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Críticas

Cineplayers

O "arrasa-quarteirões" brasileiro de 2003 é um drama irregular: tem personagens demais e pouca profundidade.

6,0

Lançado com o status de um blockbuster brasileiro, Carandiru  chega aos cinemas de todo o país carregando a responsabilidade de suprir as expectativas de um público que agora já se sente espectador de um cinema nacional de primeira qualidade.  Cidade de Deus, logicamente, é o responsável por essa responsabilidade. Comparar ou não comparar, eis a questão. Prefiro não comparar os dois filmes nesse caso, mesmo ambos tendo em comum a criminalidade e o lado sujo e mau dos brasileiros pobres das grandes metrópoles do Brasil. Aqui, no caso, da cidade de São Paulo, onde fica localizado (ou melhor, ficava, pois ele foi demolido ano passado) o complexo presidiário do Carandiru. O diretor dessa investida cinematográfica, adaptação do conceituado livro do doutor Dráuzio Varella, Estação Carandiru, é Hector Babenco, nascido na Argentina e naturalizado brasileiro, e o mesmo diretor de Pixote, um dos mais importantes filmes nacionais de todos os tempos. E qual é o resultado, afinal?

Posso dizer que foi uma pequena decepção. Carandiru dificilmente será visto como um clássico nos anos que se seguirão, mas felizmente também está longe de ser um filme ruim, uma perda de tempo para o espectador. Seus personagens (presidiários) são rasos, e suas histórias não são muito interessantes. Talvez a melhor sub-narrativa de Carandiru seja a do personagem do Caio Blat, que foi parar na prisão após se vingar do estupro de sua irmã. Todas essas sub-tramas são narradas por presidiários (em histórias fictícias, segundo Varella) para o médico da prisão, durante suas consultas. Ele, além de todo o trabalho médico, realiza também um trabalho social no presídio, prevenindo os pacientes da AIDS e das drogas, ou pelo menos aconselhando. Durante suas consultas, ele conhece e fica amigo dos presos, e a pergunta “o que você fez para parar aqui?” sempre surge nas conversas, abrindo espaço para as sub-histórias do filme – histórias de assaltos, traição, vingança. Todas bem filmadas, mas nenhuma especial e muito interessante ou original.

Infelizmente, o personagem do médico é fraco. Ele é extremamente passivo e parece que tem sempre a mesma cara ou expressão. Isso não chega a ser irritante, mas frustrante. O médico não interage com os presos, apenas serve como ferramenta para dar espaço às narrativas deles. Para justificar esse comportamento passivo, logo no início ele diz que “não é ele quem tem que julgar os presos, pois os juízes já fizeram isso antes”. Ele tem todo o direito de pensar assim, logicamente, mas do ponto de vista narrativo, o filme perde bastante com essa característica do personagem. Será que é realmente possível conviver com assassinos, ladrões, estupradores, ou mesmo presos inocentes, e ser totalmente alheio à tudo isso?

O clima de disputa entre os presos está muito bem representado dentro do filme. Carandiru que, super-lotada, possuía mais de sete mil presos, funcionava como uma pequena cidade, e havia pessoas que mandavam lá dentro, que tinham o poder, com a própria conivência do diretor do presídio. Aqui são apresentados elementos já conhecidos do público que assistiu outros filmes de prisão (Um Sonho de Liberdade me vem em mente no momento), desde a compra de mercadorias, como cigarros, até mesmo a autorização para matar outro preso, desde que o “chefe” julgasse correto. O filme usa todos esses elementos, embora force um pouco a barra quando o faz. Por exemplo, o assassinato de um determinado personagem, lá pelo final do filme, me pareceu totalmente ilógico e desnecessário, apenas para demonstrar para o público como funciona o sub-mundo dentro da prisão, que tem suas próprias leis.

Antes do lançamento do filme, a personagem de Rodrigo Santoro (Abril Despedaçado) era usada como grande ferramenta de marketing. Ela mostra todo o lado gay do presídio, um lugar cheio de homossexuais e transformistas. Na prática, a personagem acabou se mostrando fraca, com pouca importância dentro da narrativa do filme. Rodrigo Santoro realizou uma interpretação apenas razoável de uma personagem bastante irregular, desnecessária. Mas existem ainda mais elementos que, no final das contas, não adicionam muito ao filme. O problema é que a duração de Carandiru é um tanto exagerada, e nota-se que isso não era necessário. Existem várias cenas gratuitas, mesmo que divertidas, para retratar o lado “bom” de dentro do presídio. Bom no caso seria humano, malandro, engraçado. A visita de Rita Cadillac, um “marco” sexual brasileiro, por ter tido um dos traseiros mais desejados do país, é um desses momentos. Achei a cena um tanto exagerada, com direito até à “boquinha da garrafa”, bastante vulgar até mesmo. Mas uma festança para os presos.

Porém, tudo o que foi comentado agora serve para nos preparar para o grande clímax do filme, esse sim altamente baseado em fatos verídicos. Sem dúvida, a cena do genocídio que a polícia realizou, depois de uma rebelião (que já estava contida quando o genocídio se iniciou), é a mais interessante e a mais intensa de todo o filme, mesmo não fugindo dos clichês de filmes-realidade nacionais, a velha história de retratar a polícia como sendo má e corrupta. Talvez o que foi retratado no filme seja realmente o que aconteceu, mas Varella deixa claro, no fechamento de Carandiru, que ouviu apenas a versão dos presos para os acontecimentos. De qualquer forma, os números deixam poucas questões em xeque: 111 presos morreram no ataque policial, e nenhum policial perdeu sua vida naquele dia.

Julgar esse fato do lado de fora é errôneo e perigoso. A verdade é que o presídio parecia mesmo um depósito de gente – em muitos casos, de lixo humano – e alguém (algum político muito importante, com poder para tal decisão, provavelmente), viu a necessidade de se aproveitar a oportunidade da rebelião e fazer uma grande “limpeza” humana lá dentro. O filme não chega a abordar os porquês disso, nem as conseqüências, só mostra o acontecimento e o lado dos próprios presos, como já foi comentado.

Tecnicamente, o filme segura muito bem as pontas. Se não em termos de técnicas de filmagens (é todo convencional), marca registrada e aplaudida em Cidade de Deus, pelo menos em termos de fotografia, maquiagem e sets de filmagem. Mesmo assim, a fotografia é bastante escura, e sempre que o filme sai da prisão dá um certo alívio. O som, um grande problema dos filmes nacionais em anos anteriores, está muito bom. Alguns diálogos ainda são perdidos, por indefinição, mas a qualidade geral, também dos efeitos sonoros e músicas, é bastante satisfatória. A cena final mostrando imagens do presídio sendo demolido, em 2002, ao som de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, chegam a emocionar. Muita história aconteceu ali, e tudo foi enterrado em poucos segundos.

No geral, creio que o principal problema de Carandiru é o fato de ele ter seu personagem principal sendo o próprio presídio. Talvez foi o objetivo de Babenco (afinal, o nome do filme é o nome do presídio), mas dessa forma os personagens acabaram se enfraquecendo, e dificilmente você vai se afeiçoar por eles, pelo menos não o suficientemente para chegar a se importar com os seus destinos. De qualquer forma, é mais um filme brasileiro com certa importância, com imagens fortes (o filme em alguns momentos ultrapassa o nível de violência visto em Cidade de Deus – as cenas finais são quase chocantes), e bem realizado tecnicamente, ainda que não demonstre nenhuma evolução notável. Estamos progredindo.

Comentários (1)

Amaral Milhomem da Conceicao | terça-feira, 06 de Agosto de 2013 - 01:54

Dez anos depois do lançamento de Carandiru e ainda mantenho uma relação bastante legal com o filme. O drama histórico tem uma fotografia impressionante, por sentimos alívio quando muda o tom passando para cenas fora do presídio. Eu não gosto muito de Pixote, Lucio Flávio e o Beijo da Mulher Aranha, mas confesso que tenho um imenso reconhecimento pelo filme do Babenco de 2003.
Mesmo não se aprofundando em nenhum personagem, nem mesmo no protagonista, um médico que mais parece um voier, a grande atração é mesmo o microcosmo do presídio. O lugar foi kuito bem filmado, a locação real foi um achado interessantíssimo. É angustiante se imaginar num lugar daqueles, por anos a fio então, inimaginável.
A bem da verdade é que não dá tempo de ter simpatia pelos personagens, mas deveríamos ter? Temos que gostar dos personagens para um filme ser bom? Temos simpatia pelos brasileiros que "vivem" nos nossos presídios? Não sei a resposta. O que sei é que Carandiru é um inesquecivel personagem.

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