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Críticas

Cineplayers

Você que filma.

9,0
''A guerra é uma besta horrorosa que circula o mundo e nunca para.'' 
(Toni Lunardi, pastor)


O que a câmera de Ermanno Olmi vem a centralizar ainda nos créditos de seu Os Campos Voltarão (Tornnerano i prati, 2014) é não menos que a anunciação de uma tendência, uma espécie de infiltração silenciosa, inquietante e dúbia, de camadas documentais dentro de uma ficção que já nasce quimérica. Talheres, fotografias encaixotadas, lamparinas, mapas, velas, seguidas de breves planos – todos situacionais – do posto de soldados italianos cercados pela alvura da neve, em contraste com o negrume sombreado dos pinheiros e da noite. E ainda que embebidos pelo sussurro passional do soldado que se inscreve como personagem (por enquanto), é clara a capacidade do cinema de construir espaços e alimentar atmosferas através de cortes que sempre o aproximam do indicial, este que invariavelmente é mais propício ao documento. 

Debaixo da terra, um sépia lavado pela luz de lâmpadas quase em extinção; nas trincheiras, frestas nas tábuas deixam passar a luz opressiva da lua cheia. Uma naturalidade da iluminação, ou ao menos sua impressão, circunscrevem as eventualidades do posto de guarda em que alguns deliram, outros procuram soluções para o cerco austríaco em vão. E no filme de Olmi, tudo o que dói e o que alimenta vêm de fora: as canções do soldado, saudosas, falam de quem ficou, e as cartas dos entes trazem notícias sempre tomadas com amargura – pois não se está lá -; a maladia que os atinge vem dos Bálcãs, as rações, quando chegam, precisam cortar caminho pela neve que os soldados não conseguem mais escavar; os pedidos de movimentação partem do comando de divisão por telefone. E se tudo parece a reconstituição de uma realidade passada, é porque o olho da câmera toma função observativo-descritiva. Descrever com imagens, deixá-las dizer: eis a tarefa árdua do cineasta.

Mas se se fala em reconstituição, é pela falta de palavra mais adequada. O que parece acontecer diante de nossos olhos é uma falsa (e isso não a diminui) sensação de privilégio por ter filmado um fato enquanto acontecia, e não uma recriação ficcional. Porque de fato ela o é, mas a aproximação de uma realidade pela guinada documental vai tomando tanta propriedade para si que é quase possível dizer que aqueles são mesmo os soldados cujos nomes a lista de correspondência cita uma vez, e a força narrativa de emprestar um resquício de humanidade aos sujeitos repete mais na frente. De um em um, para ter certeza de que não serão esquecidos – e a primeiríssima consequência da arte é matar (no caso de Olmi, curiosamente, matar os que já morreram) para tornar aquilo imortal. 

Quando o soldado desistente arranca o brasão de seu chapéu e as estrelas de seu posto das mangas do casaco, quando pede-se licença para filmar o capacete do suicida atravessado por uma bala, quando as mãos seguram as fotografias com força e recebem com pressa as cartas da Itália, os objetos reivindicam para si maior valor que os próprios corpos que os retém; corpos saudosos, e que no entanto não valem mais nada. O que os mantém vivos e os sujeita a algo é a matéria destes objetos. Mas há ainda uma confusão a ser esclarecida, ou ao menos posta em jogo: se no documentário as ''pessoas reais'' se tornam personagens pelo intermédio das lentes, quando a ficção se ocupa em registrar personagens que já foram reais, com que estatuto das imagens estamos lidando? É um personagem que existe, a encarnação de alguém que já existiu ou os dois ao mesmo tempo? Há uma elevação sensível que o filme biográfico não comporta, porque em Olmi tudo se pretende e se alicerça como documental.

Um transe de sobrevivência, a guerra sem a dramatização histérica do sangue e do urro ensurdecedor; a situação como impulso a uma humanização limite em que a consciência é um pedido (por si e para si) de morte. Por isso o choque tão surpreendente quanto natural do primeiro soldado que olha para a câmera e confessa um fragmento da própria história; a transição dolorosa do sargento que cita a carta que escreve para a mãe, os olhos guardando o papel, e a continua, mas olhando para nós. Só que não só para nós: para ela também. Ali toma-se consciência involuntária de um encaminhamento. Aquele depoimento é um cartão postal. Aquela mãe é a nossa mãe, e Olmi é um dos pouquíssimos a entender que todo filme é um endereçamento a alguém. 

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