Saltar para o conteúdo

Caminhos Perigosos

(Mean Streets, 1973)
7,6
Média
300 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Não é o melhor filme de Scorsese, mas ainda assim é imperdível para fãs do diretor.

8,0

“Você não paga seus pecados na igreja. Você os paga nas ruas. Em casa. O resto é besteira, e você sabe”, sentencia o personagem de Harvey Keitel logo no início de Caminhos Perigosos, ainda na tela preta, em off. O impacto da afirmação vai além da sua função de servir de introdução ao filme e ao universo o qual aborda. É a melhor frase que sintetiza toda a extensa e maravilhosa obra do grande diretor e amante do cinema que é Martin Scorsese. É, ainda, o marco zero de uma nova linguagem e forma de se realizar o cinema americano.

Logo após o anúncio profético, é de se esperar chumbo grosso pela frente. Então a imagem corta para Harvey Keitel acordando bruscamente. Já é dia, e ouvem-se as buzinas e barulhos do centro de uma metrópole.  Levanta-se da cama em um quarto um tanto underground, quando logo se percebe um crucifixo na parede. Então o personagem olha sua imagem contra o espelho, ouvem-se agora alarmes e sirenes de polícia, buzinas novamente. Volta para a cama, feição preocupada e pensativa. Ao cair com a cabeça lentamente, soam as baquetas da introdução de um dos maiores sucessos pop dos anos 60: “Be My Baby”, do lendário Phil Spector e do grupo vocal feminino o qual produzia, The Ronettes. É brilhante demais para ser verdade: um tema pop romântico adolescente, que anos mais tarde seria incluído em longas como Dirty Dancing, abrindo um filme sobre o submundo dos pequenos crimes, e toda sorte de traficantes, escroques, sacripantas e vigaristas. Há certa ironia no ar, porém mais do que isso, uma grande sensação de nostalgia.

A música serve de trilha para a abertura do filme, que por sua vez consiste na projeção de uma filmagem do tipo amadora, algo como a abertura do seriado televisivo Anos Incríveis (Wonder Years), exibindo o protagonista fazendo graça frente à câmera, junto de seus amigos, do padre, assim como imagens de um recém nascido, de um bolo de aniversário, bem a moda dos filmes caseiros. Não por acaso. Scorsese diz que este é um dos filmes mais autobiográficos, que leva para as telas o ambiente que vivenciou em sua juventude junto de seus amigos do bairro Little Italy, em Nova York, onde a trama se desenvolve. Os protagonistas são Charlie (Harvey Kietel), amigo e protetor de Johnny Boy (Robert de Niro), um jovem irresponsável e caloteiro, primo de Teresa (Amy Robinson), com quem o primeiro está tendo um romance. As ambições de Charlie para entrar para o mundo da máfia são grandes – porém a má reputação de suas companhias é uma perigosa ameaça.

O roteiro não tem a engenhosidade de outros filmes seus como Os Bons Companheiros ou Cassino, tampouco os personagens são dotados da densidade e profundidade de Jake La Motta em Touro Indomável ou Travis Bickle de Taxi Driver. Se há uma observação a ser levantada para este roteiro é uma possível falta de caldo na trama, certa ausência de concisão, onde espera-se de um filme mais “barra pesada” como este talvez uma sucessão de acontecimentos mais palpável e com mais ritmo. Também pudera, o filme é de 1973 e praticamente seu segundo longa profissional – isto se assim for classificado seu curioso antecessor “Quem Bate à Minha Porta?”.

Mas o que vale mesmo em Caminhos Perigosos é a linguagem. Impossível não achar genial um ingênuo e bom caráter candidato a gângster, sair de uma cena onde está se confessando na Igreja, buscando penitência e redenção, para diretamente, logo na seqüência, entrar em um inferninho, uma “zona” cheia de strippers, tudo ao som da primeira composição Jagger/Richards que veio ao mundo, a balada “Tell Me (You’re Coming Back)”, lá do primeiro disco dos Rolling Stones, de 1964. Ou então nas cenas onde o “o pau come solto”, onde ao fundo estão rolando canções pop dos anos 60, clássicos da gravadora Motown, como “Please Mr. Postman” do grupo The Marvelettes. Complementam a trilha ainda muitos outros destes grupos de pop vocal dos anos 50 e 60 como The Shirelles, The Miracles, The Chips, The Charts e tantas outras pérolas que só um grande pesquisador de música como Scorsese poderia encontrar. Há ainda, bem a moda “italian-american” de Scorsese, o uso de canções italianas principalmente nos momentos de reunião familiar-mafiosa, onde são inseridas músicas de Guiseppe di Stephano e Renato Carosone. A trilha sonora neste filme tem um papel muito importante, pois Marty consegue uma associação imagem-som um tanto inédita no cinema – irônica, bem-humorada, original e, ao contrário do que se possa imaginar, muito conexa. O espectador é apresentado às cenas violentas em um tom quase saudosista, complacente, poético. Assim como em Pulp Fiction, assim como em A Outra Face, quando, durante um tiroteio, ouve-se ao fundo “Somewhere Over the Rainbow”.

A originalidade da linguagem não se resume ao seu sincretismo áudio-visual, contudo. Logo no início percebe-se estar diante de uma obra ímpar no cinema, já na apresentação dos personagens, feita sob a forma de legendas, recurso assim como posteriormente foi utilizado em diversos longas, como no brasileiro Cidade de Deus (Fernando Meireles já mencionou a influência do diretor no seu trabalho).  Com o desenrolar do enredo, fica evidente a intenção de Scorsese em realizar um filme com o intuito de mesclar referências da cultura italiana e americana – bem simbolizado no dialogo na beira-mar em que Charlie diz a Teresa sua lista das coisas que gosta: “Macarrão com molho de mariscos, São Francisco de Assis, frango com limão e alho, John Wayne, montanhas e arranha-céus – afinal são a mesma coisa”. Assim como qualquer outro de Marty, é um filme para quem busca uma obra autêntica, que passa longe de qualquer didatismo, moralismo, demagogia do politicamente correto ou do bom-mocismo volta e meia freqüente no cinema americano e nas produções de TV – incluindo aí até as telenovelas brasileiras. Há ainda o conflito interno do protagonista quanto ao seu próprio machismo e racismo, o que rende, dada altura do filme, uma comparação sua com a imagem de uma suástica. Como não poderia deixar de ser – afinal este é um filme autoral de um grande pesquisador e amante da sétima arte – o filme é repleto de referências ao cinema, como mais uma homenagem ao filme Rastros de Ódio, assim como já havia sido feita no filme antecessor do diretor.

As atuações são simplesmente ótimas – com destaque para a de Robert De Niro. Sua interpretação do porra-louca encrenqueiro Johnny Boy lhe valeu a ascensão no cinema, e uma duradoura parceira com o diretor que lhes renderam obras-primas, como são geralmente descritos alguns dos filmes posteriores que realizaram juntos já citados nesta crítica. Amy Robinson, a grande presença feminina no filme, interpreta a sensual e “boca-suja” Teresa. Embora sem o destaque dos personagens masculinos, impossível esquecer de sua participação na película, sobretudo em suas cenas de nudez – sem querer soar machista, é claro (aliás, comumente Scorsese recebe este tipo de crítica). E Harvey Keitel, o alter-ego do diretor nos seus primeiros filmes, o homem que personificou os conflitos interiores vividos pelo próprio Scorsese (que oscilava entre a profissão de padre e a de cineasta), o qual deve muito ao diretor pela carreira que teve. Keitel foi escalado para “Quem Bate à Minha Porta?”, o primeiro longa de ambos, quando ainda era um ator desconhecido dos teatros de Nova York, e Scorsese ainda um promissor diretor que concluía sua graduação em cinema. A equipe havia ficado tão entusiasmada e impressionada com o seu trabalho e fotogenia em sua atuação no primeiro filme que ele acabou sendo a escolha natural para Caminhos Perigosos.  Aliás, para quem for se arriscar por esta cinematografia ítalo-americana do diretor, é uma boa pedida assistir “Quem Bate à Minha Porta?”, que apesar do baixo-orçamento e ainda de um certo amadorismo, é o estado embrionário de tudo o que falamos aqui.

Mas que seja logo dito: certamente Caminhos Perigosos não é melhor de Martin Scorsese. Mas é imperdível para os fãs do diretor, essencial para entender todo legado do cineasta nova-iorquino – e porque ele é tão influente. Eu diria que, de todos os seus filmes, este é sem dúvida o mais “Scorsese” que poderia haver. O que existe de mais característico em seu trabalho está todo ali: a dualidade entre a vida cristã e o mundo subversivo, o voyeurismo nas entranhas da máfia e do baixo clero do crime, os diálogos afiadíssimos, as citações a filmes clássicos, cenas grotescas de violência, muita porrada e quebra-quebra, o inteligente e nada óbvio uso de trilha rock ‘n’ roll - tanto na escolha das músicas quanto na dos momentos em que são inseridas. Acima de tudo, uma obra de grande qualidade cinematográfica e com um apelo pop irresistível que fez escola. O que certamente explica as razões pelas quais Scorsese seja frequentemente citado por diretores como Quentin Tarantino e Paul Thomas Anderson, entre outros, como uma grande (senão a maior) influência. Alias, Tarantino faz menção especialmente a este filme como uma referência e inspiração em toda a sua obra – o que fica bem claro ao assisti-lo. Se foi para eles, pode ser para você também – por que não? 

Comentários (1)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 23 de Novembro de 2013 - 16:07

A abertura do filme é digna de aplausos!! Scorcese é meu cineasta favorito. Kietel e De Niro telentosos na excência!!
Parabéns pela crítica!!

Faça login para comentar.