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Críticas

Cineplayers

Sobre viagens e memórias.

8,5
Dirigido por Stanley Donen, cineasta por trás de Cantando na Chuva e protagonizado por Albert Finney, conhecido pelo papel no vencedor do Oscar de Melhor Filme As Aventuras de Tom Jones e por Audrey Hepburn, a eterna Bonequinha de Luxo, Um Caminho Para Dois poderia parecer a epítome do cinema industrial hollywoodiano no tangente a narrativa, estética e abordagem. Ledo engano.

Nome menos conhecido da equação, o jornalista e roteirista Frederic Raphael, que esteve tanto na British New Wave com Darling - A Que Amou Demais quanto na Nova Hollywood com Daisy Miller ou colaborando com Stanley Kubrick em seu canto de cisne De Olhos Bem Fechados. Em Um Caminho Para Dois, Raphael contou a história do casal Joana e Marcus Wallace, que enquanto viagem pela França analisam seus doze anos de relacionamento de maneira um tanto peculiar para a sua época.

É importante lembrar que Hollywood estava prestes a sofrer um bombardeio de novas obras que mudaram a forma de se contar histórias para sempre - no mesmo ano, época do Verão do Amor hippie, foram lançados A Primeira Noite de Um Homem e Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas, com Mike Nichols e Arthur Penn despontando como diretores inovadores. Ao lado de veteranos, Raphael, então na ativa há pouco mais de dez anos, organizou um filme sem propriamente começo, meio ou final.

A encenação e montagem organizada por Donen a partir do roteiro de Raphael não estabelece um presente com flashbacks, mas ao invés disso, presentifica tudo. Aos nossos olhos, o casal está vivendo em vários tempos diferentes, conectados apenas pelo desejo de seus criadores de explorar a vida, a memória e os episódios que constituem um relacionamento afetivo ao longo dos anos. Um recurso muito usado para isso são os match cuts, elementos cênicos semelhantes que conectam momentos diferentes através de sua justaposição e conferem uma unidade estética e dramática ao filme.

O filme em si possui uma maturidade analítica que antecipou o próprio Noivo Neurótico, Noiva Nervosa de Woody Allen, com sua falta de tempo presente, falta de início, meio e final e o diálogo estabelecido entre essa narrativa de recortes. O que faz a obra em si tão emocionante é que Joanna e Marcus estão constantemente se repetindo, seja nas insatisfações mútuas entre suas personalidades tão diferentes, seja na repetição de piadas e gags que servem como símbolos de afeto. Os dois brigam, se reconciliam e reafirmam seu amor ao longo do tempo, muito mudados mas também praticamente imutáveis.

Apesar de não ser uma obra perfeita - ainda há recursos como a câmera acelerada para causar efeito cômico que, utilizada pouquíssimas vezes, parece um tanto descolada do resto da narrativa calma e centrada do filme, construído não a partir de uma trama, da mão pesada para causar um efeito, mas de seus personagens e de seus interiores ao mesmo tempo idílicos e melancólicos - bem como o interior e o litoral da França por onde vagam.

Também há de se observar que, além de vagar no tempo, Um Caminho Para Dois também vaga no espaço, constituindo um clássico exemplo de road movie, o filme de estrada que constitui quase um gênero à parte, com os personagens descobrindo lugares e sendo transformados pelos mesmos. Muitas locações se repetem em vários tempos diferentes e, no roteiro, são ressignificados. Não apenas o ato que transforma os personagens, mas também os lugares que revisitam os afetam o tempo todo. Assim se contrapõe à sensação geral de muitos filmes que as conversas poderiam tomar espaço em qualquer lugar - os lugares importam, carregam significados consigo e podem conquistar novos.

É isso que faz justamente Um Caminho Para Dois tão cíclico e tão variado. Donen se demora em closes, longos diálogos e uma análise um tanto honesta para aquele contexto e posição na indústria, em um dos momentos mais experimentais da Hollywood antes da era contemporânea: não há um grande conflito a ser resolvido além daquele do dia-a-dia e de como uma viagem de carro pode te mudar para sempre. Nesse sentido, pode-se dizer que filmes como os de Richard Linklater, como a trilogia iniciada por Antes do Amanhecer, deve um tanto ao filme de Donen, soando quase como um ensaio germinal.

E justamente por trazer diretores e atores famosos à época ou consagrados convidando novas aventuras e novos experimentos que pode-se dizer que Um Caminho Para Dois é tão importante, como um caminho pavimentado, como a mão esmerada da composição clássica de enquadramento, movimentação e música se entendendo em uma das primeiras vezes com formas mais fluidas de guiar uma história. 

Tudo isso em um roteiro absolutamente empático, brutalmente honesto, sem concessões em exaltar a epopéia do cotidiano em um filme simples, minimalista até, mas que carrega um elaboração na narrativa consigo que foi à frente do seu. Ainda é um dos retratos mais pungentes do amor que Hollywood já produziu, uma pequena revolução de dentro para fora. No final das contas, Um Caminho Para Dois é uma obra rara, daquelas que acontecem só uma vez, que pode até ser imperfeito, mas é feito com tanta sinceridade e é tão desavergonhado em sua abordagem que o investimento emocional nos arrasta junto. Dramático, leve, emocionante e perene como o próprio amor em si.

Comentários (1)

Josiel Oliveira | quarta-feira, 27 de Fevereiro de 2019 - 17:57

Total, lembrei da Nova Hollywood na hora.. acho que se esse filme fosse feito uns 2, 3 anos depois, com a contracultura da Nova Hollywood mais consolidada, teria potencial pra ainda ser mais ousado na persona do casal, talvez até envelhecido melhor e ser mais lembrado hoje.

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