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Críticas

Cineplayers

Grandes histórias nem sempre rendem grandes filmes.

5,0

"Um conto épico sobre o instinto de liberdade de um grupo de prisioneiros numa região isolada da Sibéria. Grandes personagens, paisagens espetaculares, recheadas por uma história repleta de emoção, superação e determinação, tudo dentro de um contexto político (2ª Guerra Mundial e fim do comunismo). Atrás das câmeras, no controle da operação,  o sempre confiável Peter Weir. Na frente delas, um elenco que equilibra a juventude de promessas como Jim Sturgess e Saiorse Ronan, e a experiência e a serenidade de um Ed Harris."

Se o executivo de um estúdio ouvisse essas chamadas, pronunciadas por algum roteirista ou produtor independente, não teria dúvida em dar sinal verde para o projeto. Na prática, foi o que aconteceu. Caminho da Liberdade pretende entregar exatamente aquilo que a propaganda acima anuncia. Mas da ideia para a tela, alguma coisa deu errado. Impressiona como uma história com incrível potencial cinematográfico se desfaz rapidamente, com poucos minutos de projeção. Faltou um maior cuidado ao roteiro, que deveria criar mais incidentes ao longo do percurso? Faltou ritmo de jogo ao diretor Weir, que já estava afastado do seu ofício a quase uma década? Os atores não deram conta do recado? Todas as alternativas acima estão corretas? Independentemente da resposta e dos culpados de plantão, uma coisa é certa: Caminho da Liberdade não decola em nenhum momento.

Peter Weir inicia sua narrativa nos apresentando um letreiro. O público é informado que está prestes a ver uma história de um grupo de pessoas que, em 1941, para escapar de uma prisão siberiana, caminharam mais de 6.500 km, atravessando o Himalaia, passando pelo Tibete, as Muralhas da China, até chegar na Índia. O texto ainda indica que o filme se concentrará na história dos três únicos sobreviventes dessa jornada. O roteiro recua alguns anos. Estamos agora na Polônia cercada pelas tropas de Hitler e Stalin. Um homem chamado Janusz (Jim Sturgess) está sendo interrogado pelas autoridades comunistas. Pelas marcas do seu rosto, é óbvio que ele foi severamente torturado. Querem que ele confesse o crime de espionagem. Ele nega. Até que uma mulher (Sally Edwards) entra no recinto. Ela também está bem machucada. Logo ficamos sabendo que se trata da esposa de Janusz. Ela não agüenta a pressão e confessa a participação do marido nos crimes que lhe são imputados. De posse da prova que faltava, o rapaz é levado a uma inóspita região da Sibéria onde deverá cumprir uma pena de 20 anos.

A prisão é uma verdadeira Torre de Babel. Num mesmo espaço, convivem criminosos políticos e comuns. A primeira orientação que eles recebem é que o maior obstáculo de fuga não são as cercas, as armas ou os cães de caça, mas sim as condições da natureza que rodeiam o local. Qualquer um que tentar escapar terá que enfrentar o frio glacial, a neve, os animais e, mais à frente, o deserto. Mesmo sabendo que a chance de sobrevivência é quase nula, Janusz faz amizade com o prisioneiro Khabarov (Mark Strong), que diz conhecer os macetes para sair dali. Com o passar do tempo, Janusz conhece outros interessados em participar do projeto, entre eles o americano Mr. Smith (Ed Harris) e o russo Valka (Colin Farrell). O plano é colocado em prática e o grupo inicia sua jornada. Mais tarde, a ele se juntará a garota polonesa Irena (Saoirse Ronan).

Se alguma lição pode ser tirada de Caminho Para Liberdade, é que nem sempre grandes histórias geram grandes filmes. Se a base de sustentação do cinema é e sempre será a imagem, do ponto de vista narrativo e dramatúrgico, ele se assemelha a qualquer outra forma de arte que pretenda contar uma história. É necessário o conflito, a tensão, o atrito. Sem isso, não há nada a ser contado.

É o que acontece aqui. Após uma primeira meia hora bem articulada, em que o roteiro se preocupa em apresentar os personagens, demarcar o espaço geográfico e contextualizar o momento histórico, o filme parte para a fuga propriamente dita (que sequer é mostrada) e... desaparece. Pelos 100 minutos seguintes, o que veremos será o grupo de fugitivos caminhando, caminhando, caminhando... e caminhando. Nada de grande relevância ocorre durante todo o percurso. Os obstáculos naturais, como geleiras, montanhas, desertos e tempestades de areia, não parecem tão perigosos quanto no princípio. A falta de comida também não traz preocupações maiores, a não ser mais para o final da empreitada. Numa região de floresta como aquela, me espanta a quase inexistência de animais selvagens, como ursos, lobos e cobras. O único povo nativo que encontram pelo caminho são os mongóis, de quem, inclusive, recebem ajuda. Não há disputas internas, nem mesmo com a entrada de uma mulher. Caminho da Liberdade é um estranho caso de filme que acaba quando deveria estar começando.

Na estrutura épica do filme encontramos ecos evidentes de David Lean. Mas mais que o mestre inglês, Peter Weir parece buscar inspiração no cineasta alemão Werner Herzog. As grandes paisagens, a imensidão do horizonte, o interminável azul do céu, servem para acentuar a pequenez dos ex-prisioneiros em fuga diante de um objetivo praticamente impossível. Weir faz o possível para evitar sentimentalismos. Muitas das sequências de caminhada, especialmente as do deserto, não são embaladas em trilha sonora, o que intensifica a crueza daquele cenário inóspito. A morte e o enterro de um dos personagens é filmada tão de longe, que o espectador poderá dar pela sua falta somente alguns minutos depois. Se de um lado as opções do diretor são válidas, de outro, elas aumentam ainda mais o nosso distanciamento com a história e os personagens.

Peter Weir é daqueles cineastas que possuem baixo índice de rejeição do público e da crítica. Seu nome chamou a atenção com o lançamento do hoje cultuado Piquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock, 1975). Weir confirmou seu prestígio com o drama de guerra, Gallipoli (idem, 1981), pelo qual ganhou vários prêmios em seu País Natal, a Austrália. O sucesso chamou a atenção de Hollywood, que o trouxe para fazer filmes na América, alguns mais comerciais [O Ano em que Vivemos em Perigo (The Year of Living Dangerously, 1983) e A Testemunha (Witness, 1985)] e outros mais pessoais [A Costa do Mosquito (The Mosquito Coast, 1987)]. Rendeu-se a produções de estúdio como Green Card - Passaporte para o Amor (Green Card, 1990) e Sem Medo de Viver (Fearless, 1993). Caiu nas graças do público com Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, 1989) e na da crítica, com O Show de Truman - O Show da Vida (Truman´s Show, 1998). O Mestre dos Mares - O Lado Mais Distante do Mundo (Master and Commander: The Far Side of the World, 1993), épico marítimo que tinha ambição para se tornar um dos principais filmes do ano, teve o azar de ser lançado no mesmo ano de O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei (The Lord of the Rings: The Return of the King, 2003), e por isso mesmo é daqueles trabalhos que parecem estar sempre esperando por uma revisão. De lá para cá, Weir parou. Sete anos longe do cinema. O intervalo parece ter feito mal a ele. Em Caminho da Liberdade, ele se mantém fiel ao tema do inconformismo do individuo em se adaptar à estranheza do mundo ao qual pertence (seja a comunidade Amish, em A Testemunha; a escola, em Sociedade dos Poetas Mortos; a América, em Green Card; a própria sobrevivência após um acidente de avião, em Sem Medo de Viver; e a vida fabricada, em O Show de Truman). Mas dessa vez alguma coisa se perdeu. Sobrou senso de espetáculo, faltou cinema.

De um elenco numeroso, é natural que as atenções recaiam sobre os atores mais famosos. Nenhum deles está num mal dia, mas todos são comprometidos pela fragilidade com que o roteiro desenvolve seus personagens. O britânico Jim Sturgess já demonstrou ser bom ator em Quebrando a Banca (21, 2008) e Across the Universe (idem, 2007), nesse último revelando inclusive dotes musicais. Na pele do protagonista Janusz, ele está competente, ainda que seu rosto de criança torne um pouco difícil acreditarmos que ele seria capaz de convencer e liderar todo aquele bando de criminosos. Dos integrantes do grupo, Janusz é um dos únicos que tem um objetivo definido, válido e palpável. Seu personagem cresce com isso, e junto com ele, o ator.

Ed Harris, como Sr. Smith, faz um tipo calado e desconfiado. Não ficamos sabendo seu primeiro nome. O jeito reservado talvez seja explicado pela culpa que carrega em relação ao seu filho adolescente. Essa carapaça será quebrada pela liderança, o carisma e, acima de tudo, a bondade de Janusz, que o fazem acreditar na possibilidade da fuga. Um complemento interessante ao personagem de Smith – não inteiramente aproveitado pelo roteiro – é garota Ilena, a quem ele obviamente enxerga como uma filha. Saoirse Ronan, como Ilena, pouco tem a fazer a não ser andar, andar, andar, e sofrer, sofrer, sofrer. O irlandês Colin Farrell exercita seu sotaque russo (de forma eficiente) e coloca em ação seu estilo ladrão de bom coração. E, por fim, o competente Mark Strong, cujo personagem é descartado do filme após a fuga, completa a lista de atores desperdiçados.

O roteiro assinado por Peter Weir e Keith R. Clarke é baseado no romance The Long Walk: The True Story of a Trek Freedom, escrito em 1957, por Slavomir Rawic. Por quase meio século, se acreditou que o livro relatava a história real vivida por Rawic. Mas em 2006, essa versão foi desmentida pela BBC, que demonstrou numa reportagem que o autor do livro teria sido libertado pela União Soviética em 1942. Em 2009, mais pimenta foi jogada na fogueira, quando um polonês chamado Witold Glinski anunciou que a narrativa do livro se referia à sua vivida e não à de Rawic.

No fundo, pouco importa se a história trazida às telas por Peter Weir é real ou ficção (ainda que a improbabilidade do sucesso da fuga sugira acreditarmos mais na segunda opção do que na primeira). O que é relevante é perceber que, como peça cinematográfica, Caminho da Liberdade simplesmente não funciona.

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