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Críticas

Cineplayers

Trabalho e realismo

5,5

Quando Roma (2018) concorreu ao Oscar no início deste ano, surgiram algumas inquietações sobre o lugar de onde partia o seu autor, Alfonso Cuarón, diretor e roteirista do filme. Declaradamente baseado na própria infância do diretor, dá a impressão de apresentar a sua protagonista, Cleo (Yalitza Aparicio), como um fragmento do mundo de seus empregadores. Um ano depois, a escolha do México para consideração da Academia em Melhor Filme Internacional é A Camareira (La Camarista, 2018), e a sombra de Roma, vencedor da categoria, espalha-se por seu sucessor.

A Camareira, assim como a obra de Cuarón, está enraizado na desigualdade econômica e racial vivida na Cidade do México. Eve é camareira de um suntuoso hotel na capital e acompanhamos a repetição de suas práticas de trabalho, as ligações para casa e as esperanças de uma mudança na sua condição financeira. Lila Avilés, diretora do filme, engaja-se em um estudo de personagem, mas um que não deixa de lado ambições de um realismo social – que almejam uma determinada representação desse universo de serviço.

A reiteração de seu trabalho incorporado radicaliza esse objetivo realista. O filme parece tentar nos atribuir um papel de estarmos juntos com ela em seu cotidiano, de percorrermos os corredores do hotel de quarto em quarto. Mas a sua temporalidade (planos curtos, cenas breves) impede que tenhamos uma dimensão do que é esse mundo que nos é apresentado; além disso, a sua composição visual (fixa e plana) coloca-nos primeiramente como observadores de Eve e da sua rotina.

A Camareira e Roma partem ambos de um entendimento incômodo de que as suas personagens habitam o mundo onde trabalham, evidenciando uma relação geográfica de classe e raça na Cidade do México. Eve trabalha longe de casa, tão longe que, a depender das exigências de suas horas extras, ela pode não conseguir voltar. Ao final, o filme busca articular uma distinção entre o hotel como habitado pelos hóspedes e o hotel vivido por Eve. Nesse ponto, o filme encena algum deslumbre com o esplendor do hotel (um luxo ausente das operações de trabalho que o fazem funcionar). Essa articulação, no entanto, contradiz-se com o desejo específico de sua protagonista, como é relatado no próprio filme, de voltar para casa. Não é tanto, assim, que a magnificência do hotel seja o lado oposto da precariedade das operações de trabalho que ali se dão, mas que essa suntuosidade é um dado do ofício desigual da protagonista em um contexto de despossessão que lhe impede de habitar tanto a sua casa (pela distância) quanto o trabalho (pela cadeia de poder).

Dito isso, há algo de interessante nos espaços do hotel pelos quais os hóspedes não circulam – desde os tecidos brancos que se amontoam na lavanderia até os quartos ainda não ocupados. E o filme consegue localizar nesses espaços algo que é particularmente vivido pela sua personagem. É uma pena que, fora desses poucos momentos, ele recorra a uma visualidade tão pouco criativa – o que me parece indicar não apenas uma tentativa de realismo, mas uma desconsideração pela experiência sensível da sua protagonista. Algumas filmografias, como as de Kelly Reichardt e dos irmãos Dardenne, mostra-nos que é possível narrar a precariedade do trabalho e ao mesmo tempo nos envolver na experiência sensível do trabalhador. Ao nos colocar como observadores do trabalho de Eve, A Camareira recusa à personagem um corpo sensível e tira muito de sua agência sobre o seu próprio trabalho.

É um gesto compreensível, podendo partir de um entendimento de que a agência da personagem naquele espaço é de fato muito pouca. Mas essa conclusão tem um sentido um tanto conservador de impedir que ela descreva, a partir de suas relações afetivas, as suas próprias possibilidades de futuro. Embora o filme recuse o lugar do autor que Roma abraça avidamente, ambos formulam, no olhar que dirigem para suas personagens, uma autoridade afetiva. Se Roma, como resultado de um trabalho coletivo de imaginação a partir do cinema, permite-nos ir eventualmente para além desse lugar de autoridade, o rigor realista de A Camareira não admite o mesmo respiro.

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