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Críticas

Cineplayers

O sorriso do Diabo.

8,5

De todos os pontos em que Mario Bava se prestou a observar os horrores que cercam o imaginário humano, Cães Raivosos (Cani Arrabbiati, 1974) marca o mais radical. Não se viu aquela obsessão pela elegância sádica em iluminar e filmar instrumentos representantes de morte, de temor, de superstição; até mesmo diferentemente de outro título radical de sua carreira (Banho de Sangue [Reazione a Catena, 1971]), Cães Raivosos não apresenta qualquer característica que aprendemos a conservar como convenção de seu cinema. É um rompimento, um corpo deslocado, mas não apenas no que tange em seu nome; exemplificando esse aspecto de deslocamento: erroneamente associado por algumas pessoas como um filme polizziotesco, o que temos aqui não representa o cenário urbano da Itália dos anos 70, e muito menos temos em mãos uma linguagem popularesca que caracterizou filmes de cineastas como Fernando Di Leo; se trata de uma obra única, independente de vertentes e de padrões clássicos ou novos à sua época, e, justamente por esse aspecto, qualquer tentativa de associá-la a rótulos periga a cair no erro. Um fato é necessário constatar, todavia: Cães Raivosos retira a elegância, mas conserva o sadismo em filmar o medo; somente isso serve para manter a atmosfera que somente aquela safra europeia poderia oferecer.

A falta de refinamento serve para contextualizar a tensão e a própria sujeira a que a narrativa se compromete em abordar; não estamos postos em um estudo de personagens: a organização de toda ação é focada no situacional – é sobre um fato e pelo fato, sem qualquer resquício de exploração de um passado ou futuro; apenas e tão somente o que se passa em tela. Quando uma das principais coisas a receber destaque é o notável George Eastman, fica mais fácil de perceber que tudo faz sentido; aquele sorriso sujo, sacana, o rosto suado e tomado pela barba, presentes na figura de mais de dois metros, recebendo zoom na obra que compete para ser a coisa mais inconsequente que Mario Bava já criou. É a doença, porque temos consciência de que o prazer sentido entre aqueles personagens que realizam seus atos (normalmente associados ao conceito de “maldade”, porém, é importante falar na falta de julgamento comum àquela escola europeia) também está presente na mentalidade do artista, que, por sua vez, reconhece e faz questão de colocar o espectador na posição de observador – a cumplicidade. É o que Bava faz quando, por exemplo, uma personagem é obrigada a urinar de pé, enquanto dois bandidos observam e gargalham (a pessoa por trás das câmeras é a mais pervertida de todas); simboliza bem o prazer de realizar o choque e de submeter-se a esse efeito.

O sentimento de repulsa é somente lenha para a obsessão. É mais um aspecto desenvolvido constantemente ao longo da obra de Mario Bava e que recebe um significado mais extremo aqui; é o prazer mórbido de sentir o horror e de ser afetado por ele, seja da forma como for - o comportamento mais natural a praticamente toda expressão de cinema exploitation. Filmes como A Vingança de Jennifer (Day of the Woman, 1978), Thriller: A Cruel Picture (Thriller - en grym film, 1974), Aniversário Macabro (The Last House on the Left, 1972) e etc marcam existência para provar que nessa vertente estilística praticamente inexiste a presença de qualquer elemento simbólico que represente alguma forma de esperança para quem os assiste. Não existe o conceito de bem e mal; é tudo batido em uma série de ideias que esmagam qualquer positivismo possível existente – são filmes feitos com nada, vendidos como lixo e recebidos pelo público com vômito (entre negações e aceitações, a atenção dada é a mesma). É por isso que Cães Raivosos é honesto ao, justamente, deixar explícito que não está sendo honesto com ninguém ali (e muito menos conosco); qualquer um é alguém com potencial a ir para o saco e isso não surpreende. Aquilo não irá terminar bem, mas o que está em cheque é a forma com que os fatos irão se suceder, e o cintos precisam ser postos: todas as vezes em que Mario Bava se comprometeu em filmar a violência crua, foi abraçado o conceito de lidar com fatos de maneira inconsequente, aproveitando o convencional para desestruturá-lo (a figura de filme de gênero trabalhada em prol de ideias maiores).

É necessário tocar na forma como a câmera lida com o espaço: mesmo a narrativa seguindo uma estrutura comum ao que se conhece por filmes de estrada, ela oferece uma noção espacial limitada; o que se filma está guardado em um carro, reduzido a suor, medo e morte, registrado pela imperfeição (câmera trepidando). Mesmo quando alguma ação é registrada fora do espaço central, não é difícil de ter a sensação de que o sufoco é o mesmo – pela própria condição na qual os personagens estão inseridos, tomados pela incerteza e desconfiança em relação aos seus próximos. A forma esmagadora com que se filma encontra um fato curioso no tocante da fotografia: foi utilizada a técnica do Technicolor. Até mesmo em seus mais selvagens e elegantes delírios visuais, Bava trabalhou com o Eastmancolor; isso leva a refletir os motivos que o levaram a buscar o Technicolor (para dar outra perspectiva do vermelho vivo do sangue? Acho que não; não se trata de um elemento recorrente) para algo que certamente não pedia esse tipo de ruptura.

A mais óbvia constatação de todas é a de que não é possível ficar indiferente em um contato com Cães Raivosos, sobretudo para quem conhece a pessoa que está por trás de tudo aquilo. É como um vírus em sua filmografia, adulterando impressões e levando a refletir todo um trabalho artístico; e mais: um vírus de final de carreira, contrariando qualquer possibilidade de um testamento comum, uma das últimas manifestações de alguém que foi marcado pelo estudo da beleza mórbida e que, aqui, se dispôs a chocar – testemunhar não mais como uma manifestação de admiração pelo belo, mas como uma admiração pelo grotesco, quase que uma obrigação, submissão, um pacto doentio estabelecido com o artista. Nojento mesmo. É a definição pura do termo “soco no estômago”: o monstro agredindo o cão, ao invés de alisar a sua cabeça.

Comentários (8)

Francisco Bandeira | terça-feira, 02 de Junho de 2015 - 18:18

Ramos sempre com ótimos textos. Belo filme do Bava mesmo, acho que se rever, aumento ainda mais minha nota. haha 😋

Taumaturgo Moura | terça-feira, 22 de Setembro de 2015 - 16:56

Fiquei Impactado! com essa obra do Bava...e bela análise do filme Victor! tá de parabéns.

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