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Críticas

Cineplayers

No filme mais dolorido dos últimos tempos, Tsai Ming-Liang e Lee Kang-Sheng fazem de sua parceria uma obra-prima.

10,0

Venta muito, chove bastante. Constantemente. Não é a primeira vez que o genial Tsai Ming Liang fala sobre a miséria humana, ou como os elementos naturais afetam destrutivamente seus personagens. Na verdade a miséria o interessa, mas talvez eles nunca tenham sido tão miseráveis quanto o protagonista de Cães Errantes (Jiao you, 2013). O ator de O Rio (He liu, 1997), que é o mesmo Lee Kang-Sheng daqui, o casal protagonista de Viva a Amor! (Ai qing wan sui, 1994), os delírios musicais dos personagens de O Sabor da Melancia (Tian Bian Yi Duo Yun, 2005), todos estavam à beira da tragédia... e alguns literalmente mergulhavam nela, auto punição ou não. Pois dessa vez Tsai não nos dá tempo de nada e já na segunda cena mostra o horror absoluto no qual vai jogar todos em cena, além de voltar a trabalhar com a água que cai e destrói/constrói como em Eu Não Quero Dormir Sozinho (Hei Yan Quan, 2006).

Tsai dessa vez está falando muito mais de dor física que psicológica, o que também não é original na obra dele. Mas no lugar de metamorfosear o interior de seus personagens com enfermidades exteriores reais, dessa vez quer apenas filmar seu interior. E a dor do abandono e do desamor que trava os movimentos e congela a alma é traduzida magistralmente em planos estáticos longuíssimos, que exige exemplar rigor do mestre em sua construção e elaboração, jogando também o espectador lentamente numa teia de desconforto e insensibilidade pura, numa espécie de imã emocional do oposto, que atrai olhos e sentidos para a direção que mais incomoda. Não há como não se tocar com toda aquela situação, ao mesmo tempo que queremos fugir dali.

É muito simples de entender os símbolos que Tsai usa aqui; gênio que é gênio não precisa dificultar sua obra pra fazê-la melhor ou mais moderna. Um homem e seus dois filhos foram abandonados na cena de abertura, e a vida, que já não estava boa, passou a ser insuportável. Antes vivendo sob a norma da classe média, hoje o trio trafega à margem da sociedade, como párias. Óbvio que trabalhar como homem-placa pelas ruas de Xangai não é ter o melhor dos empregos ou salários; com o que se ganha, você tem de agradecer se puder viver numa casa abandonada em meio aos cães vadios, às intempéries (que não cessam, dentro e fora), rezando para seus filhos encontrarem qualquer comida e qualquer ocupação enquanto você se despedaça dia a dia. Aos pequenos, resta perambular e literalmente sobreviver, contando com a ajuda de estranhos. Acima de todos, paira o desespero e o sofrimento a níveis extremíssimos.

Nunca foi do feitio de Tsai conceber filmes banais ou leves. Seu interesse sempre esteve na busca do 'caminho do não-retorno', aquele momento da vida de cada um onde tudo já foi tentado e tudo já foi feito, não há como mudar. E não há mesmo. A dor que se sente em Cães não é pouca, e não provem de doenças físicas, de tristezas menores ou de mesquinharia cotidiana. O que vemos aqui é o abismo humano real e imutável, traduzido em cenas que já nascem clássicas como a do canto mais dolorido que o cinema verá esse ano, do surgimento de um repolho em cena trazido pela pequena filha, da estupenda cena protagonizada por este mesmo repolho, e de tantas outras.

Mais uma vez, como eu já tinha dito no início do texto, Tsai conta com o maravilhoso auxílio de Lee Kang-Sheng, desde já sério candidato a todo e qualquer prêmio da temporada de melhor ator. Tsai sabia que tinha o ator certo em mãos, as colaborações anteriores afirmavam isso. Mas ambos convergem em ápice sua parceria, diante de nossos olhos. Cada uma da cenas descritas acima contam com fotografia espetacular, mise-en-scène soberba e uma atuação definitiva de Lee, que se entrega à devastadora dor de seu protagonista de forma avassaladora. E como se tudo não fosse suficiente, Tsai ainda entrega a seu astro uma cena final em forma de catarse, com um plano fixo de quase 20 minutos de seu personagem submergindo na escuridão gradativamente, onde homens e cães já não se diferem mais.

Comentários (8)

Rodrigo Giulianno | terça-feira, 24 de Junho de 2014 - 13:54

Sem punhetação o Carbone acerta

Sem querer bancar o andrógino do site... o cara entrega uma crítica curta... mas muito orgânica. Não é que o rapaz possui o seu estilo!

Esqueça os blockbusters, filmes de ninja, monstros... camarada...


Tsai Ming cada vez mais foda...agora é só assistir ... Os coreanos é que precisam voltar... China, Taiwan e afins estão bem na fita atualmente...

Caio Henrique | quarta-feira, 25 de Junho de 2014 - 09:02

Porra, deu vontade de assistir...

Diego Henrique Silveira Damaso | quarta-feira, 31 de Dezembro de 2014 - 01:52

Ótima crítica, Carbone! Grande percepção. A última cena, a do canto e a do repolho estão entre as melhores do ano, com certeza.

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