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Críticas

Cineplayers

Tocante e profunda, lida com sentimentos de forma madura. Um dos melhores filmes do ano.

8,0

Transpor a história de um livro para as telas de cinema nunca é tarefa fácil. São diversos os desafios que se apresentam aos roteiristas e cineastas que se arriscam neste ofício, tanto em termos de linguagem quanto no sentido da narrativa. O monstro adquire sete cabeças quando o livro é um best-seller, uma vez que é preciso lidar também com uma legião de fãs prontos para reclamar diante de qualquer corte ou leve alteração no enredo, ainda que necessários ao funcionamento da história como peça cinematográfica.

Temos dois exemplos recentes que ilustram muito bem este fato. A série Harry Potter, da britânica J. K. Rowling, já arrecadou bilhões nos cinemas, mas as adaptações sempre parecem sofrer ao tentar condensar o calhamaço de páginas em uma metragem aceitável para as telas. Enquanto isso, a transposição do fenômeno de Dan Brown, O Código da Vinci, foi tomada como mal-sucedida por não conseguir manter o clima do livro, desagradando ardorosos fãs em diversas partes do mundo – só para constar, acho um filme bastante eficaz dentro de seus propósitos.

Eis que chegamos a O Caçador de Pipas. Escrito por Khaled Hosseini, a obra tornou-se sucesso mundial, caindo no gosto de pessoas dos mais diferentes países, tanto por sua tocante história quanto pelo painel apresentado sobre a cultura e situação afegã. Era apenas uma questão de tempo até que fosse realizada uma versão para o cinema, fato que se concretizou quando o diretor Marc Forster (Em Busca da Terra do Nunca) uniu-se ao roteirista David Benioff (A Última Noite) para tocar em frente o aguardado projeto.

Para quem não leu o livro ou não conhece a história, O Caçador de Pipas divide-se em dois momentos. Primeiro, acompanhamos a infância de Amir e seu amigo Hassan, filho do empregado, no ano de 1978, no Afeganistão. Inseparáveis, os dois passam os dias brincando, indo ao cinema e empinando pipas, uma rotina que é quebrada quando Hassan é vítima de um ato de violência por garotos locais, fato testemunhado por Amir, que nada fez. No segundo momento, Amir já é um adulto morando nos Estados Unidos. Dominado pela culpa pelas suas ações em relação a Hassan, ele encontra uma chance de se libertar de seus fantasmas ao voltar para o Afeganistão dominado pelos talibãs e adotar o filho de Hassan.

Como se percebe pela leitura do parágrafo acima – ou, melhor ainda, para quem leu o livro –, O Caçador de Pipas apresenta uma história forte, com todos os ingredientes para cair no gosto das pessoas. É um conto que versa sobre temas universais, com os quais qualquer um é capaz de se identificar, como amizade, lealdade, remorso, amor e, acima de tudo, redenção. Em outras palavras, uma história capaz de funcionar não somente no livro, mas em qualquer outra mídia, como o cinema.

E funciona. O Caçador de Pipas encontrou em Marc Forster um cineasta com a sensibilidade necessária para capturar toda a profundidade da história e compreender a simbologia apresentada. A primorosa adaptação do David Benioff ao texto de Hosseini é, igualmente, digna de aplausos. O roteiro de O Caçador de Pipas, mesmo com os inevitáveis cortes em relação ao livro, mantém viva a essência de toda a trajetória de Amir, além de tornar críveis as relações entre todos os personagens.

Estes, aliás, são o grande foco de O Caçador de Pipas. É verdade que os acontecimentos apresentados na obra são, em sua grande maioria, trágicos. Mas de nada eles adiantariam caso o espectador não conseguisse compreender como cada um influenciou a vida dos personagens. Assim, o ato de violência contra Hassan, a invasão soviética no Afeganistão, as mortes e diversos outros fatos adquirem dimensão maior por levarem a platéia a compreender melhor os personagens.

E todos são ricamente construídos. Em O Caçador de Pipas, não existe a divisão entre o bem e o mal. Todos os personagens possuem qualidades e defeitos, uma construção que os transforma em pessoas reais. Amir, por exemplo, interpretado com sensibilidade por Khalid Abdalla, é um homem cujos traumas do passado moldaram sua personalidade. Introvertido, não consegue lutar por aquilo em que acredita, resultado de um remorso que o domina desde a infância. Ao receber a ligação de um velho amigo, o protagonista encontra a oportunidade que sempre buscou de encontrar a paz dentro de si mesmo, ainda que para isso precise enfrentar a guerra em sua terra natal. “Há uma maneira de ser bom de novo”, diz uma figura importante em sua vida.

Da mesma forma, o personagem de baba, pai de Amir, também é desenvolvido com extremo cuidado. Homem de personalidade forte e princípios, baba não hesita em expressar suas opiniões, mesmo que polêmicas e podendo trazer problemas à família. Além disso, não consegue compreender a falta de postura do filho, enquanto admira a força de Hassan: “Um homem que não se defende é um homem que não defende nada”, diz ele. É uma forma de agir que leva Amir a duvidar do amor de seu pai, ainda que este seja exista e seja claro.

E é exatamente no personagem de baba que reside a melhor interpretação de O Caçador de Pipas. Homayoun Ershadi compõe um personagem complexo, que esconde, sob o perfil rígido e disciplinador, uma doçura capaz de transmitir segurança àqueles que o cercam. O ator consegue transmitir a dualidade do personagem através do olhar e de sutilezas que demonstram como baba é uma referência para Amir e uma pessoa digna da admiração de quem o conhece. Uma belíssima e detalhada interpretação de Ershadi.

Já que entrei no campo das atuações, é necessário destacar também o trabalho dos garotos que interpretam Amir e Hassan quando jovens. Zekeria Ebrahimi, no papel de Amir, é extremamente hábil na representação da mudança pela qual passa o personagem após presenciar a cena de violência; o Amir alegre, conquanto ciumento, do início transforma-se em uma criança repleta de raiva, uma transformação captada com verossimilhança por Ebrahimi. Mesmo assim, a melhor performance infantil fica por conta de Ahmad Khan Mahmidzada, como Hassan. Dono de um rosto espetacularmente expressivo, Mahmidzada brilha em diversos momentos pontuais, sendo capaz de demonstrar com perfeição aquilo pelo qual passa seu personagem. Reparem no olhar de pavor de Hassan quando ele encontra os “valentões” ou no sorriso de pura felicidade que brota de sua face quando ganha uma pipa.

Este preciosismo na construção dos personagens, tanto por parte do roteiro quanto dos atores, resulta em uma ligação profunda com o espectador, que sente junto com eles todas as dificuldades. Os relacionamentos – de Amir com Hassan, de Amir com Soraya ou de Amir com baba – têm credibilidade, e a platéia acompanha a história desejando e torcendo para que o protagonista consiga se perdoar pelo que fez para seguir com sua vida. Esta identificação entre as pessoas do lado de cá com a jornada do personagem é o núcleo de O Caçador de Pipas e o segredo pelo qual esta se revela uma história emocionante.

E emocionante não significa manipulador. Muito pelo contrário. Marc Forster é um cineasta versátil e talentoso, e conduz a trama de maneira simples e sem afetações. Há, claro, alguns momentos que vão levar lágrimas aos olhos da platéia, mas eles não são planejados e executados com essa função. Quando Amir lê a carta de Hassan, por exemplo, o que dá o nó na garganta não é uma trilha sonora melodramática ou algum recurso apelativo; é, sim, a culpa do protagonista dominando-o com uma força avassaladora ao perceber como traiu o amor que o amigo sempre teve por ele.

Esta simplicidade no trabalho de direção está presente em todos os momentos de O Caçador de Pipas. Com uma história poderosa em mãos, Forster provavelmente sabia que não eram necessárias invencionices ou grandes nomes no elenco para construir um grande filme. Ele dá espaço para os atores dominarem a produção e, conseqüentemente, faz com que O Caçador de Pipas seja uma obra sobre personagens – ou, mais especificamente, sobre pessoas. Não importa se crianças, adultos ou velhos, orientais ou ocidentais, o filme, por tratar com sinceridade os sentimentos, consegue falar com todos.

O cineasta merece crédito também por algumas opções à primeira vista pequenas, mas que acabam fazendo a diferença. Por exemplo, o contraste entre o Afeganistão da infância de Amir e o país dominado pelos talibãs é claríssimo, mas realizado de maneira sutil. Ainda que a devastação assome aos olhos, são os pequenos detalhes que colaboram na construção deste cenário desolador, como o homem enforcado que Amir enxerga no carro ou as crianças de muleta brincando. Forster acerta ao não dar destaque a estes momentos – provavelmente, um diretor mais apelativo faria –, preferindo inseri-los no plano de fundo, como se fossem situações comuns no dia-a-dia daquelas pessoas.

Outro destaque fica por conta das cenas envolvendo as pipas. Obviamente, são realizadas por computação gráfica, mas Forster cria momentos não somente divertidos nas disputas como também soube capturar com perfeição a força da metáfora proposta por Khaled Hosseini no livro. As pipas são um belíssimo simbolismo para o estado de espírito do personagem, que passa boa parte do filme procurando se libertar do peso que sempre carregou para poder voar e ser livre mais uma vez.

No entanto, também há problemas na adaptação. Ainda que as surpresas da história funcionem (para quem não leu o livro, claro), surgindo orgânicas à trama e não como modo de enganar o espectador, algumas cenas parecem corridas demais. Talvez eu tive esta impressão pelo fato de ter lido o livro, sempre mais completo e aprofundado, mas determinados momentos e passagens soaram acelerados. Da mesma forma, algumas cenas que funcionavam pelas palavras de Hosseini acabam artificiais através da câmera de Forster, como a fuga de Amir após ser espancado.

Mesmo assim, são problemas pequenos para um filme com tantas qualidades e, provavelmente, as estranhezas que se dissiparão quando O Caçador de Pipas for assistido uma segunda vez. O novo trabalho de Marc Forster é uma obra tocante e profunda, que lida com sentimentos de forma madura e sem concessões, uma jornada de redenção capaz de falar com qualquer pessoa. Forster e Benioff optaram por realizar uma adaptação não somente para agradar o autor e aos fãs, mas com o verdadeiro desejo de contar uma história. E assim construíram aquele que é, desde já, um dos melhores filmes do ano.

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