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Críticas

Cineplayers

Ironias musicadas.

8,5

Bob Fosse foi extremamente feliz ao dirigir Cabaret (idem, 1972), por uma série de qualidades fáceis de atestar por quem assiste ao longa – cedo ou tarde, descobre-se que a ironia é a principal delas. Ambientada nos primeiros anos da década de 30, a história começa com uma apresentação na casa noturna Kit Kat Club. Em alguns minutos, o público é convidado a conhecer de perto aquele lugar onde a alegria e todo tipo de excesso são permitidos, não cabendo qualquer tipo de problema ou preocupação. Ainda que o mundo exterior viva dias de instabilidade, o clima do local é de pura evasão no espaço, como dá conta de evidenciar o mestre de cerimônias vivido por Joel Grey, que dança e canta em três idiomas, no primeiro dos vários números musicais passados no palco daquela casa. O cenário é a Alemanha do alvorecer do nazismo, que estava ganhando forma e certa força com a organização de partidos políticos cujos membros já deixavam entrever algumas de suas convicções, gerando um contexto que, de certa forma, afeta os protagonistas.

A trama gira em torno de Brian Roberts (Michael York), um tímido professor que chega dos EUA disposto a se estabelecer no país de Beethoven. Em sua procura por moradia, ele encontra Sally Bowles (Liza Minelli), uma jovem espevitada que vem a ser uma das estrelas do cabaré. Todas as noites, ela oferece performances marcantes no lugar, usando seu talento de cantora e dançarina. De início, os dois não se entendem muito bem, por conta da diferença de idiomas em que tentam se comunicar, mas logo ambos passam ao inglês e Sally começa a falar sobre sua rotina e o que Brian poderá encontrar enquanto estiver vivendo na Alemanha. Em pouco tempo, os dois terão se tornando amigos muito próximos, o que não impedirá Sally de uma investida para levá-lo para a cama. A tentativa, porém, é frustrada por um detalhe importante que Brian revela bem em cima da hora.

O que fica, então, é uma relação de íntima amizade entre os protagonistas, que os leva a experimentar muitas aventuras juntos, tendo sempre as apresentações de Sally como pano de fundo. Cabaret pertence ao gênero musical, mas o roteiro de Jay Presson Allen, que adapta o romance de Joe Masteroff, não está limitado a cantorias fantasiosas que surgem de repente entre os diálogos dos personagens. As canções sempre são executadas na casa noturna e, ainda que pareçam deslocadas da narrativa, colaboram para descrever com precisão a situação política e a mentalidade vigente em solo alemão. E o ingrediente principal das letras dessas músicas é a ironia, que revela certa coragem do filme para tocar em assuntos que, por tantas vezes, são varridos para debaixo do tapete ou colocados sob pedras. Em última instância, as melodias, combinadas com os versos e as danças, são reflexões bem-humoradas sobre um país que já carregava o trauma da derrota e da ruína de um pós-guerra e que ainda geraria, na mesma década, um novo confronto bélico sem incorrer em didatismos e, portanto, sem subestimar a inteligência do espectador, que deve estar atento a fim de pescar as referências por elas distribuídas.

A certa altura da trama, porém, a amizade entre Sally e Brian é sacudida pelo surgimento de Maximiliam von Heune (Helmut Griem), um poderoso barão que se interessa por Sally e passa a rondar a dupla jogando charme e oferecendo várias possibilidades derivadas de sua riqueza. Entre outras coisas, ele serve para nos fazer enxergar o quanto ainda falta malícia à dançarina, ainda que ela insista em dizer e tentar demonstrar o contrário aos quatro ventos. Brian, por sua vez, caminha na direção oposta: sua aparência retraída e incauta esconde um homem que aproveita ocasiões para satisfazer seus prazeres. Com isso, Cabaret revela que não é feito de personagens planos, mas cheios de nuances e facetas que invalidam julgamentos fechados a seu respeito. À medida que a narrativa se desenvolve, Fosse entrega perspectivas diferentes sobre eles e também revela o vigor de sua direção uma das oito categorias em que a produção foi merecidamente premiada com o Oscar – só foi derrotado como melhor filme, muito provavelmente porque O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972) estava na disputa e papou a estatueta.

Entre os méritos de Fosse, está a acuidade com que dimensiona o público dentro do Kit Kat Club, com seu jogo de espelhos e reflexos alucinantes que só reforçam a atmosfera de embriaguez do lugar. Uma das passagens mais interessantes do longa é a que intercala um dos musicais do cabaré com a tortura a um homem que não partilhava a ideologia nazista. Enquanto ele é espancado e grita de dor, Sally e o mestre de cerimônias entretêm os frequentadores da casa com versos irreverentes e sua coreografia, o que expõe o contraste entre o furor político que ganhava terreno naqueles anos e a alienação voluntária de quem passava suas noites no cabaré. Não falta, portanto, consciência crítica ao filme, que chegou a ser oferecido a nomes de peso como Billy Wilder e Gene Kelly antes de chegar às mãos de Fosse, que trazia em seu currículo pregresso outro musical – Charity, Meu Amor (Sweet Charity, 1969). Isso para não falar do excelente desempenho de Minelli, então com seus 26 anos, transpirando carisma e beleza juvenil e fazendo ótima dobradinha com York. Com tantas qualidades reunidas, é justo que Cabaret seja um filme sempre lembrado e revisitado.

Comentários (20)

Anderson de Souza | sexta-feira, 08 de Maio de 2015 - 07:40

Mds...suas ideias são tão bem inseridas no texto que é tão bem desenvolvido que da até vergonha de escrever o meu hahaha

Anderson de Souza | sexta-feira, 08 de Maio de 2015 - 07:40

Pra mim ta muito a frente de All That Jazz.

Patrick Corrêa | sexta-feira, 08 de Maio de 2015 - 21:44

Deixa de besteira que seus textos também não são ruins!
Ainda não vi nenhum outro de Fosse e acho que já passou da hora de conferir All that jazz. 😋

Yuri da Silva Souza | sexta-feira, 30 de Outubro de 2015 - 00:28

Está lá com "Cantando Na Chuva" e "A Noviça Rebelde" no topo dos maiores musicais do cinema,junto com "Amor,Sublime Amor" e "O Mágico de Oz".

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