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Críticas

Cineplayers

Em busca da narração perdida.

9,0

Bunny Lake Desapareceu (Bunny Lake is Missing, 1965) é um ensaio sobre a consistência da estrutura. O sequestro de que se trata aqui não é tão somente o de uma garotinha de quatro anos, mas do artefato que inaugura toda a sua narrativa. Se Bunny não puder ser encontrada (se ela sequer existir), teremos mais de 100 minutos vazios de sentido condenados a se anular no próprio vácuo. Encontrar Bunny é encontrar um coeficiente que garanta essa estabilidade, que reate essa significação.

Há um constante exercício de flexão sobre a lucidez do espectador em Bunny Lake, começando pela instituição de um olhar que não resta passivo, não se deleita com as imagens que captura como naquele cinema que presta serviços ao prazer sensível da córnea. Preminger provoca este olho a criar asas e percorrer quadros — reais e imaginários, feito extensão da câmera — à procura de Bunny, figura que jaz ao longo de toda a projeção no terreno vivo da memória, reagente às curvas dessa narração e às inferências dessas imagens invasoras. Análogo a seu próprio universo, o decurso de Bunny Lake Desapareceu é o de uma brincadeira de roda. Enquanto a ciranda gira, a perspectiva do mundo, até então imóvel, segura de seu eixo, parece desprender-se da atmosfera e circunscrever de mãos dadas o espaço. As noções do que é frente e verso se confundem, as direções desfalecem, a simetria elementar das coisas se dissipa, e as certezas do que é céu e do que é terra se perdem espraiadas pelo circuito enérgico do carrossel.

Tudo em Bunny Lake corresponde ao que o olhar, embriagado pela dinâmica curvilínea da mise-en-scène, é capaz de captar e deduzir, preenchendo o que Preminger apenas subscreve e criando o que a lente não alcança. Começa por um intenso jogo de adivinhação, onde antagonismos são eleitos e derrubados à menor incisão narrativa, sucedendo e substituindo uns aos outros de modo a compor um remoinho de possibilidades do qual o espectador é desafiado a depreender uma solução. Obedecendo à sequência de disposição das peças, temos, primeiro, as funcionárias da escola, depois o sádico senhorio Horatio Wilson (Noël Coward), passando por sequestradores anônimos, pelo superintendente Newhouse (Laurence Olivier), por Steven (Keir Dullea) e, em certo momento, até pela própria Ann Lake (Carol Lynley). No fastígio dessa torre estão os intercâmbios constantes entre o que é factual e o que é místico, a começar por dois elementos fecundantes da imaginação: as máscaras africanas e a velha reclusa que vive no andar de cima da escola.

Preminger lança sobre Bunny Lake indícios de um sobrenatural que não se constitui nem tenta se materializar em algum momento, alcançando plenamente seus efeitos enquanto mera sugestão do cineasta. O quarto da Sra. Ford (Martita Hunt) é abrigo dessa possibilidade do fantástico presente ao longo do filme como qualquer coisa que coça, como um corte entre os dedos, porque ele é de propósito alojamento de uma atmosfera que é estranha à sua natureza. Tem-se por corrente em Bunny Lake o drama realístico de uma criança perdida e do desespero em sua busca (a contundência com que Preminger ilustra este drama é quase documental: acompanhamos a aflição da mãe, o metódico trabalho da polícia, a comunicação entre delegacias, a menção do fato em jornais...), e por outro lado, repousando sublimada nessa linha-mestra, feito poeira de um mundo antes deste, uma porção de tudo que é fantasístico e absurdo, suspensa e em contraste com o meio que ocupa.

Pegue dois movimentos de câmera, simples e idênticos, separados por 20 segundos de projeção: Horatio larga uma das máscaras sobre a cama de Ann e os dois deixam o quarto em direção ao banheiro; a câmera, em vez de acompanhá-los como normalmente faria, aproxima-se da máscara e dedica a ela alguma fração de tempo, e o espectador entende que esta ênfase visual não é arbitrária, já que sempre efetuada quando se tem a intenção de dar relevo a um elemento funcional da narrativa (é a partir de convenções violadas como esta que Preminger vai embaralhando o processo inferencial do público, jogando e induzindo a falsas conclusões); já no corte seguinte é em direção aos objetos pessoais de Bunny (uma caneca, um pente, uma escova de dentes) que a câmera caminha, rima visual que confere o mágico e o soturno como molduras ao cenário do subsequente desaparecimento desses itens. Enquanto os personagens pensam em sequestro, limitados à concretude de um fato policial qualquer, o espectador é forçado a contemplar o contrassenso, a bruxaria, onde o que é tangível se rarefaz e o painel que se tem por verdade espirala numa incerteza que infecta toda a diegese de Bunny Lake.

Esse binômio (realidade e fantasia) é atravessado pelo diretor sem que, como já dito, um deles chegue a se efetivar realmente (como ocorre em O Bebê de Rosemary [Rosemary’s Baby, 1968], por exemplo). Este fantástico que não existe, como uma presença espírita, sobrepõe-se ao concreto irradiando no ponto de vista seus vícios e contaminando o discernimento do espectador num efeito que liquefaz a realidade e a funde na mentira (não é afinal a ilusão da realidade sempre um elemento instável no cinema, sempre a ponto de desfazer-se enquanto não controlada pelo cineasta?). Ao sugerir que Bunny tenha literalmente desaparecido, Preminger desfere contra a atmosfera de Bunny Lake um golpe fantasmático, uma cicatriz (marca não do que acontece, mas do que pode acontecer), ecoando num nível subterrâneo em relação ao da imagem corrente na tela.

É fundamental nessa engenharia que se estabeleça uma ligação bastante especular entre público e protagonista, já que, ao menos pelos primeiros 40 minutos, qualquer espectador se alinhará ao drama vivido por Ann, o que faz de Bunny Lake um filme de personagem antes de tudo, e qualquer suspense eventualmente obtido é não mais que subproduto deste gênero macro que o comanda. A transição de um para outro nos é importante aqui porque está intimamente ligada à dualidade abordada anteriormente, entre o que é fantástico e o que é real. Bunny Lake Desapareceu é, afinal, um filme de fissuras e (falsas) bifurcações: da realidade à fantasia, do drama ao suspense, do ilibado ao antagônico, com o detalhe essencial de que o segundo componente de cada uma dessas dicotomias nunca se constitui realmente, sempre resultado do mesmo truque que Preminger opera.

Nessa interseção de gêneros, o drama está ligado ao que é tangível: uma ocorrência de criança perdida, fato do dia-a-dia nas grandes cidades. Quando anoitece em Londres, porém, o universo de Bunny Lake sucumbe à ficção pela ficção, ao propriamente falso e cinematográfico. O campo para essa transição não poderia ser outro: o quarto sobre a escola. Enquanto a cena anterior contempla pela primeira vez, de forma explícita, a possibilidade de Bunny Lake não ser real, o superintendente e a Sra. Ford introduzem para o espectador um sinal ainda primitivo de thriller psicológico. Como ponto de encontro de duas dimensões diferentes (onde as linhas do que é sonho e do que não é, do que é drama e do que é suspense, atravessam uma sobre a outra), temos este terreno de fratura do espaço diegético onde é dia e noite ao mesmo tempo. A cena se divide em duas metades, ora sobre a Sra. Ford, ora sobre o superintendente Newhouse: ela é filmada frente às janelas fechadas, sob uma luz diagonal, em contra-plongée e entre os vários objetos que a escuridão distingue; ele, ao contrário, é pego num plano médio entre duas janelas abertas, sob iluminação branda, por onde se vê o dia já morrente do lado de fora. O diálogo é quase tão especial quanto, expondo ali as mais plausíveis teorias de que Bunny não existe, de que Ann é louca e de que o irmão a protege, ou seja: Preminger desafia o espectador a romper com o vínculo que sustentou o espelhamento entre ele e Ann até ali; os alicerces narrativos desses primeiros 45 minutos são derrubados, e o filme muda de gênero, muda de tom, muda tudo.

A corrida de Ann em direção à casa de bonecas já determina a diferença de ritmos. Antes a incursão era pela garota, amparada por um exército de homens uniformizados e seus cães farejadores; agora, é por um objeto-chave mais importante à própria narração do que à trama, uma pista que permita à história seguir seu curso, e vemos no isolamento de Ann o isolamento próprio dos personagens de um thriller: ela corre as ruas cheias de Londres sem ser notada, trombando em gente apressada e indiferente. Ann, deste momento em diante, está sozinha em sua aventura.

A cena entre as centenas de bonecas é o destacamento do falso ante o que, em um primeiro momento, parece verdadeiro. Tudo é vágado na forma como as bonecas parecem ganhar vida tão logo a luz do lampião desliza pelas fileiras de bracinhos e cabecinhas que emergem do escuro. Mais uma vez é preciso que o olho, provocado, reaja e enxergue o que não existe, porque o objetivo da lente é desapropriar tudo que é físico, tudo que pode ser racionalmente explicado, para que a materialidade dos objetos se dimane lentamente até que a sanidade adquira uma insuspeita semelhança com a loucura. A casa de bonecas é essa cápsula de subversão da realidade que Ann atravessa, entrando certa de seu objetivo por um lado, saindo para um quarto de hospício pelo outro.

É do lado de lá do túnel que o mundo de Bunny Lake se descasca para revelar uma outra esfera, com outras regras e propriedades. Nessa nova diegese, irmã da primeira, a figura de Bunny temporariamente se apaga, absorvida pela personagem de Ann, que agora ocupa seu lugar: o de vítima, sequestrada e jogada num quarto escuro. Ann torna-se Bunny, que por ora “desaparece” (tudo parte deste notável dialogismo narrativo) do radar do público.

A cena da fuga traz a câmera na mão que voa por sobre telhados e escadarias, se arrasta pela humidade dos porões e guarda Ann em cada beco em que ela precise se infiltrar, vigiando possíveis captores e clareando vielas; a câmera se converte em cúmplice de Ann, restaurando a ligação inicial entre ela e espectador e reunindo-nos todos em torno de um só objetivo: escapar do pesadelo. Repare na aspereza da iluminação, na névoa que embaça os olhos, no aspecto labiríntico das trilhas (em sua missão de blindar Ann, a câmera anula nossa noção de direção e de espaço ao filmar sempre o caminho de onde se veio, nunca para onde se vai), nas máquinas, grades e tubulações, no quartinho com ratos e macacos que ela acaba encontrando em sua tentativa de achar a saída, e na iconografia de mansão mal-assombrada do hospício, já do lado de fora, quando ela finalmente escapa. O flerte com o insólito é apenas prelúdio do que virá.

O desconcerto dos ângulos e a ilustração sempre errática das brincadeiras parece emular esse processo de retorno a um plano concreto, dispersando a diegese espectral que entorpeceu o universo de Bunny Lake a partir de sua metade. A cena final não é apenas uma revelação de trama, mas um esclarecer de subterfúgios, uma síncope, um rodopio; é quando Preminger dá nome à lógica que move Bunny Lake: a de um esconde-esconde jogado com o público. Esconder um gênero sob outro, esconder o concreto sob a fábula, esconder Bunny na irresistível tendência de suposição do espectador, em um dos muitos cômodos que sua imaginação comporta.

Quando Ann deixa a tela carregando Bunny nos braços, as pontas se atam novamente, e a simetria da narração é enfim restituída. Bunny Lake começou com uma ocorrência de menor desaparecido, termina com a conclusão do caso, como o filme de personagem que anunciou ser, porque Preminger sustenta um compromisso com a sobriedade dos fatos e presta à sua protagonista (perseguida, contestada dentro e fora do filme) o irrevogável benefício da verdade, assim como ao público que se viu testado a duvidar de tudo que a narrativa lhe havia oferecido como sólido.

Perdura intocada para Preminger a coerência do narrar enquanto magna instituição. Encontrar Bunny é, por fim, encontrar uma resolução, é literalmente salvar a entidade “história” em suas estruturas mais simples, evitando que esta função de comunicar entre em falência. Se desde o início insisto que Bunny Lake Desapareceu é uma brincadeira de criança, um jogo, então o jogo é este: vestir-se de herói e resgatar, como uma princesa na torre, a elegância da narração.

Comentários (2)

Luís Daniel | terça-feira, 01 de Novembro de 2011 - 12:23

Excelente texto, como sempre.

Kaio Feliphe | quinta-feira, 02 de Julho de 2015 - 00:23

Um dos melhores textos do site. E um dos melhores filmes de sempre.

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