O impacto inicial dessa reimaginação de Brinquedo Assassino passa longe do apelo de gênero, que eventualmente virá. O longa original de Tom Holland completa 30 anos tendo criado mais do que uma franquia, mas uma iconografia cada vez mais rara, introduzindo um personagem hoje lendário no cinema, mas abrindo mão de um viés outro que não apenas entreter - e que não há qualquer problema nessa escolha. Essa versão de Lars Klevberg em sua sequência inicial já aponta uma possibilidade política ao aludir a xenofobia em sua própria concepção, tirando qualquer elemento sobrenatural da natureza do personagem principal, e substituindo essa chave por uma vilania focada num personagem vietnamita, o deflagrador da ação e motivador do horror crescente em tela. Uma opção arriscada que em 5 minutos coloca em cheque a natureza das intenções do longa; a provocação precisa ir tão longe?
Mas Klevberg parece disposto a ir além sempre. Munido da vontade de atacar as organizações de todas as instâncias que pretendem invadir globalmente a vida da sociedade nos setores alimentícios, de saúde, de entretenimento e tecnologia (principalmente), a produção desse novo olhar sobre o surgimento de Chucky - cujo batismo resulta numa piada fabulosa ligada ao seu novo dublador, Mark Hammill - se debruça a combater o sistema capitalista do primeiro ao último minuto, que inclusive propiciou o nascimento desses conglomerados. A união de vários vetores que são ancorados pela empresa da qual o boneco é garoto propaganda e principal elemento motivador de expansão permite que se imagine a nossa realidade como escravizada a essas companhias, que literalmente estão em todos os lugares, controlam nossa vida e, como metaforizado na produção, pode destruir nossa individualidade a qualquer momento.
No lugar onde está inserido no mercado, Brinquedo Assassino também surpreende ao promover uma alegoria 'gore' nos tempos politicamente corretos de gênero como vivemos a tantos anos, que exceções tiram do caminho 'bom mocista' generalizado. Ainda mais ousado que o segundo capítulo da franquia original, o filme felizmente nem está preocupado em se alicerçar em 'jump scares' mas sim em construir um visual crível esteticamente e que converse com sua proposta crua de tratar a narrativa. Criando cenas indigestas aqui e ali, aos poucos fica cada vez mais claro que o olhar do diretor norueguês era agudo em todos os sentidos, realizando alguns banhos de sangue bem-vindos, sem medo de ousar ao escalar os elementos gráficos de cada cena, como o quintal de melancias que remetem a crânios na escuridão e, na verdade, envidenciam uma denúncia ao racismo em seus primórdios.
O roteirista Tyler Burton Smith vem da indústria do videogame e consegue um excelente portfólio na adaptação das ideias concebidas originalmente por Don Mancini, ao explorar um universo em expansão 30 anos depois e situar Chucky como parte integrante de uma força não mais sobrenatural, mas tão perigosa quanto. Diálogos afiados, construção de personagens muito delicada e motivações pessoais acertadas colocam seu roteiro como um diferencial dentro da seara atual do cinema para larga escala, tão pouco preocupada com o básico da qualidade. O roteiro aqui não é um acontecimento a ser estudado, mas coloca em cheque a capacidade da indústria cinematográfica americana em produzir entretenimento com um mínimo que seja de cuidado. Impressiona as implicações que cada ação cometida no filme desencadeie reações condizentes e compatíveis com sua necessidade, sem exagero e dentro de um cenário de credibilidade possível.
Também o elenco não poderia ter entendido melhor a proposta geral, com Aubrey Plaza reconhecendo todos os códigos de sua jovem mãe que não quer perder seus desejos de jovem mulher. O pequeno Gabriel Bateman também se sai muito bem na sua tarefa de provocar aflição e doçura no público, junto com todo o elenco infanto-juvenil. Mais uma vez Bryan Tyree Henry (de Se a Rua Beale Falasse) mostra habilidades ilimitadas de talento e carisma, deixando claro seu futuro na indústria. E se todos no elenco, a direção e o roteiro fazem a diferença positivamente, quem deveria ser o astro do filme decepciona. Maior é mais grave problema, o novo Chucky faz mais do que não ter nenhuma empatia com o público; ele comete o pecado fatal de nos clamar pelo velho Chucky a toda cena, derrapando exatamente onde não deveria e arranhando um filme que poderia ter ido além do original.
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