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Críticas

Cineplayers

Adaptação espanhola de conto dos irmãos Grimm é uma reverência ao cinema mudo.

8,0

Os tempos são outros, mas a arte prevalece. O cinema que vem sofrendo com carência de ideias e dividindo espaço com as séries televisivas que estão crescendo ganha, vez ou outra, algumas belezas artísticas, expressivas e exponenciais. E se todos ouviram falar de Branca de Neve, com destaque para a adaptação da Disney, Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937), então se contextualizarão sem muitas dificuldades nessa história, se bem que a adaptação é mais próxima da obra original escrita pelos irmãos Grimm lá em 1820, a qual poucos tiveram acesso. É outra coisa! E não é exatamente para crianças. Inevitavelmente, para comentar tal obra, lembramos de O Artista (The Artist, 2011), filme que ganhou o Oscar há pouco tempo e parece ter empolgado alguns realizadores, entre eles Pablo Berger, que vinha elaborando este filme mudo há anos e finalmente o lançou com puro requinte. Há quem prefira esse Branca de Neve, vencedor do Goya, comparado ao oscarizado de 2012. 

Nesse filme sem diálogos, a força da imagem resplandece, tal como os pioneiros do século que tiveram na imagem a força máxima do cinema, até seu aprimoramento com a execução das falas. Originado de uma escolha corajosa, essa versão espanhola é atenuante. Há quem torça o nariz pela proposta que legitima o prelúdio da sétima arte, há quem queira apreciar o cinema e sua exuberância artística projetada. Este filme encanta pela singularidade distinta. É livremente influenciado pelo expressionismo alemão. Temperado com a cultura espanhola das danças e touradas, assistimos quase que maravilhados uma mesma história tantas vezes contada com direito a anões, uma potencial bruxa e a maçã envenenada. Ainda que se conheça tais referências, os resultados são imprevisíveis.

A história traz Antonio Villalta, um grande toureiro que cometeu um erro durante uma tourada que quase lhe custou a vida. Perdeu os movimentos do corpo. Sua esposa grávida, preocupada e desesperada, morreu durante o parto sequencial ao acidente enquanto o marido estava internado. Ele nega a criança como rejeição da perda e casa-se algum tempo após com uma autêntica megera. O filme bebe da tragédia e posteriormente se desenrola avançando em outros gêneros, variando do horror ao cômico. Passamos a acompanhar a história de Carmencita, menina que foi morar com a avó desejando diariamente alguma atenção do famoso pai. Diferentes fases de sua vida nos são apresentadas, o futuro lhe reservou a surpresa de um reencontro com o patriarca e um duelo com a madrasta. Daí se desenvolve definitivamente o cerne da história, com estilizações em P&B, luzes e enquadramentos primorosos, daqueles que raramente vemos em obras convencionais. A captação de sombras em contraste com as luzes sugere um clima de morbidez conciliado ao aspecto artístico sugerido, fazendo de cada quadro um retrato que poderia ser impresso.

Tudo remete ao cinema mudo, a montagem e a edição nos sintoniza com ele. Não é difícil. É corajoso, e funciona. Funciona graças ao talento da produção e do diretor em fazer do longa, que pode assustar aos desavisados devido a falta de falas, uma obra de fácil compreensão e que jamais é cansativa. São quase duas horas – um excesso desnecessário – que pode ser apreciada de diferentes maneiras. A trilha garante um interesse particular, já que se transforma crescentemente com diferentes instrumentos e palmas. Os atores dão conta de expressar sem palavras com destaque para Maribel Verdú, sempre tão meiga nas interpretações, emprestando uma severidade horripilante a uma vilã comum, mas que empolga pela tenacidade.

Adaptações da mesma história através do século não faltaram. Recentemente os cinéfilos puderam assistir duas originadas de Hollywood. A primeira foi Espelho, Espelho Meu (Mirror, Mirror, 2012), com Lily Collins e Julia Roberts; a outra, Branca de Neve e o Caçador (Snow White and the Huntsman, 2012), com Kristen Stewart e Charlize Theron numa ótica medieval. Ambas irrelevantes. A versão de Pablo Berger é toda distinta e especial. Atravessa a Espanha no início do século XX. O filme segue um ritmo, tal como na dança, arte expressa na história, no âmago da persona protagonista e naquela que fora sua mãe: uma dançarina espanhola cuja sensualidade inflamava junto à trilha marcante a qual o ritmo tradicional do país embalou.

Diante a magnitude de sua história e do poderio estético de cada cena, constatamos o suplício de uma vida com momentos de horror – o jantar servido pela personagem de Verdú é sórdido. Cada frame realça o cuidado do diretor em nos transportar ao legítimo cinema mudo e evidenciar um filme de reverência ao passado. Arte pela arte, imagem pela imagem, em Branca de Neve as imagens encantam e assombram.

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