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Críticas

Cineplayers

Um filme bobo.

3,5

Não há nada de muito útil a ser dito sobre O Bom Coração, filme do diretor islandês nascido na França Dagur Kári, de quem nunca havia ouvido falar e dificilmente ouvirei nos próximos anos. Kári parte de um discurso impossível, com personagens caricatos unidimensionais, desenvolve este discurso de maneira absolutamente burocrática, e o encerra com uma bobagem absurda que, por razões não muito interessantes expostas abaixo, é de longe a melhor coisa do filme.

Decepciona o fato de um novo diretor até então deslocado da indústria e com a oportunidade de mostrar seu trabalho em língua inglesa acabar por entregar algo tão convencional; mas é preciso entender que esta é uma opção muito consciente de Dagur Kári. Não que a opção não seja válida, ela é apenas uma chance desperdiçada, além de possuir um argumento impraticável.

Isto porque O Bom Coração é um filme bobo, quase idiota para os termos de hoje, contando com a coragem (travestida de tolice, única razão pela qual isto não é uma completa perda de tempo) de Kári para investir na ingenuidade do espectador como se estívessemos a recém na gênese do cinema falado, como se o discurso de O Bom Coração tivesse alguma chance de funcionar. É irônico, mas o próprio fracasso do filme vem convalidar seu argumento: de que o prazo de validade da inocência no mundo expirou há muito, e que qualquer otimismo infantil como este aqui será mastigado e cuspido sem piedade.

Dagur Kári exige compreensão do espectador cena após cena, a começar pelo conflito central, que lança mão de uma das dinâmicas mais reprisadas no cinema: o adorável rabugento que tem o coração amolecido. É preocupante, porém, que Kári erre na condução de uma fórmula tão banal (ainda que sua narrativa em geral seja correta, apesar de irremediavelmente monótona); a transição de Jacques (Brian Cox) é abrupta e inorgânica, do mesmo modo que a mudança de personalidade de Lucas (Paul Dano) é tão falsa que precisa ser comunicada verbalmente ao espectador. Quando você vê Jacques comemorando a volta de determinada pessoa, por exemplo, no terço final do filme, tem a sensação de que perdeu duas ou três cenas importantes.

O bar como um universo particular para seu protagonista também não é novidade. Casablanca (idem, 1942), A Morte de um Bookmaker Chinês (The Killing of a Chinese Bookie, 1976) e Contos a Go Go (Go Go Tales, 2007) são exemplos de filmes que souberam destilar a atmosfera dentro destas quatro paredes. Kári fracassa, e o que é pior neste caso, porque O Bom Coração tem como substância essencial o bar onde se desenvolve. Em alguns momentos é mais um filme sobre bar do que sobre sacrifício, em torno do qual diálogos inteiros são construídos, em cujas figuras se projetam o romance, o drama e o humor como fundamentos de O Bom Coração, e se nenhum desses gêneros parece funcionar como deveria, Kári consegue um resultado interessante ao soldá-los e transformar seu filme numa massa homogênea de sentimentos, dando origem a um clima particular e que é a alma do filme. Mesmo que não sirvam a seus propósitos imediatos, o humor combina-se ao drama e a alegria cobina-se à depressão emulando a própria relação entre Jacques e Lucas, compondo um cenário desolado e encarnecido, mas tenro ao mesmo tempo, mesmo contraste que passa pela fotografia chapada, de luzes sempre muito brilhantes, mas sem cor alguma.

O Bom Coração é um conto de fadas, compartilhando de lógica semelhante a de M. Night Shyamalan em A Dama na Água (Lady in the Water, 2006), filme que demanda do espectador uma boa vontade e um tal grau de inocência que ser humano nenhum tem para oferecer. É onde ambos fracassam. É o espírito infantil alojado neste corpo adulto que os transformam em aberrações deslocadas no mundo e incapazes de resistir ao menor senso crítico, tal como o personagem de Paul Dano.

É por este motivo que o final de O Bom Coração promete sofrer uma rejeição em massa. Ainda assim, não deixa de ser a decisão mais corajosa de Dagur Kári no filme: a tolice celebrada como escolha consciente; alegre e ridícula sem o menor senso de vergonha.

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