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Críticas

Cineplayers

Quando viver é a capacidade de se criar memórias.

9,0

Recebido com pouco ânimo em seu lançamento, Blade Runner - O Caçador de Andróides (Blade Runner, 1982) há muito merecia atenção aqui no site; algo que estamos tentando suprir em 2015 com várias obras. Ganhou status de clássico cult com o tempo, tendo sua importância - e, principalmente, conteúdo - reconhecidos, superando todos os problemas de produção e tendo ganhado uma versão do diretor que muito adicionou ao resultado final; saíram recursos que tentavam deixar o filme mais comercial, como uma narração desnecessária e um final forçadamente feliz. Na época, nada disso adiantou e a crítica pegou pesado com o longa, além do público não ter comprado a ideia.

Mas o tempo passou e Blade Runner, hoje, é considerado um dos grandes nomes da década de 80. O visual herda da época o descompromisso com o real e as luzes neon para construir uma Los Angeles distópica, onde a maioria dos humanos deixou a Terra para viver em seletivas e segregatórias colônias espaciais que são anunciadas, em telões coloridos e convidativos pelos prédios da cidade, como o Novo Mundo. Os Estados Unidos, na época sinônimo de prosperidade, no futuro de Blade Runner é sujo e super povoado e lotado de asiáticos, que ditam a comida, as propagandas e ficaram com os restos daquilo que era uma irônica visão para o sonho americano. Era um período pós Reagan, onde a desigualdade ficou ainda mais evidente e isso é visto claramente no filme.

Entre luzes contra a tela, carros que voam e fumaças que deixam a espetacular composição visual com tom de fábula urbana, temos Deckard (Ford), um caçador de androides fora de atividade que se vê obrigado a "aposentar" (termo usado para matar) androides de humanos simulados precisamente. Esses droides, conhecidos como Replicantes e escalonados de Nexus 1 a 6, são representações perfeitas dos humanos, inclusive na possibilidade de despertar sentimentos, o que os fez serem proibidos na Terra, sob ameaça de extinção.

Los Angeles é escura, sempre chuvosa, com um clima pesado e depressivo que mistura ficção e investigação noir. Em um raro momento onde o Sol aparece, ele logo é escondido por uma cortina por o ambiente estar 'claro demais', sem coincidência no mesmo momento em que uma personagem perde sua personalidade ao descobrir que era apenas um robô, uma simulação de vida. Suas memórias são inseridas, o dom de tocar piano não é seu. Ao mesmo tempo, é ela que desperta a vida perdida novamente em Deckard, pois a razão fica de lado pelo sentimento que passa a sentir por ela, abrindo novos horizontes para o personagem.

Os Replicantes que Deckard está caçando possuem personalidades fortes, sempre com características marcantes e unicidade. Com data de validade (eles são programados para durar apenas 4 anos para evitar sua total evolução e acabarem sendo uma ameaça), eles não são necessariamente maus, apenas gostam de viver e estão em conflito psicológico ao descobrir sua finitude - assim como o homem, com a diferença que nunca temos essa noção da proximidade da morte.

Caçados pelo tempo e pelo julgamento humano - criação x criador -, eles são a perfeita representação de uma visão pessimista de onde o capitalismo pode levar à população: seres falsos, imemoráveis, e também perdidos, influenciados e programados. John Carpenter viria a fazer uma crítica igual e muito mais direta em seu Eles Vivem (They Live, 1988), onde somos a todo momento bombardeados, diretamente ou involuntariamente, por propagandas de produtos que nos fazem ter vontade de tê-los, mesmo que não haja a necessidade - algo muito mais acentuado hoje, com eletrônicos que ficam "obsoletos" com o passar dos anos e que desviam o real foco de investimento para coisas supérfluas e movimentam milhões com isso.

No filme, tais produtos são animais artificiais caríssimos (uma coruja, sinal de ostentação) ou reais inalcançáveis (uma cobra é falsa porque a personagem 'não teria dinheiro para comprar uma real', mostrando um desnível social também nos seus robôs), criados por um homem que é a representação de Deus para tais droides; o homem que define quem irá viver e porque, um Frankenstein da tecnologia perfeita. Não é a toa que seu ponto fraco seja um funcionário com uma doença degenerativa extremamente solitário, que acaba se identificando com os droides e os ajuda, ainda que sendo manipulado, em uma clara referência a Gepeto da famosa história Pinóquio - clássico de Carlo Collodi e imortalizado pela Disney em 1940.

Pris (Daryl Hannah) sorri de maneira ameaçadora, mas ao mesmo tempo se movimenta de forma quase circense, acrobática e de maquiagem marcante. É uma artista perdida entre lixos e um futuro incerto, esperançosa de que Roy (Rutger Hauer), seu líder e amante, consiga encontrar uma maneira de postergar esse fim. É justamente quando o caçador se torna caça e Roy, através do implante do medo, consegue fazer Deckard perceber como é viver sob sua perspectiva (só perto de morrer que ele reencontrou o estímulo de seguir em frente, saber de seu fim valoriza a vida), em uma cena belíssima e perturbadora, resultando em um dos discursos mais inspirados e bonitos do cinema improvisado, que exalta toda a mensagem do filme até ali e eleva o status filosófico da obra.

Já Ford, que vinha numa crescente e emplacando um sucesso atrás do outro, teve uma relação complicadíssima com Scott, chegando a dizer que esse havia sido seu filme mais difícil de fazer. O estresse emocional foi recompensado com o tempo e o status que Blade Runner conseguiu alcançar entre um Star Wars e um Indiana Jones e outro. Mas nem por isso o resultado final foi afetado e Deckard é, sem dúvida, um personagem tão marcante em sua carreira quanto Solo ou Jones.

O desenho de produção é inspirado e inspirador (vejam essas 142 fotos sensacionais dos bastidores), em uma época onde Ridley Scott estava no auge de sua criatividade e produzindo uma obra-prima atrás da outra - seu filme anterior havia sido Alien, O Oitavo Passageiro (Alien, 1979) e o posterior A Lenda (Legend, 1985). Ainda que seja de certa forma engraçado ver um futuro pensado de maneira limitada - fotos que possuem mais do que sua área de visão teoricamente permitiria enxergar, monitores CRT ainda sendo utilizados, telefones públicos apenas modernizados -, assusta notar que a mensagem anti capitalista e a reflexão humana de Blade Runner não apenas se manteve atual como praticamente se confirmou como uma previsão de como estaríamos daqui a tantos anos.

Há vários livros e teorias sobre o filme e alguns dizem que o próprio Deckard seria um Replicante, afinal, são pouquíssimos que sabem que são um. Não duvido, afinal, a verdade é que o difícil em Blade Runner é achar um humano verdadeiramente puro no meio de tanta plasticidade eletrônica. E se todos fossem robôs perdidos no tempo de sua própria criação? Philip K. Dick, autor da obra original e de diversos outros clássicos da ficção literária, ficaria orgulhoso.

Aproveite a mensagem e viva bem e intensamente a cada dia. Nunca se sabe quando os seus quatro anos chegarão ao fim. Crie memórias.

 

"Eu vi coisas que vocês homens nunca acreditariam.
Naves de guerra em chamas na constelação de Orion.
Vi raios-C resplandecentes no escuro perto do Portal de Tannhaüser.
Todos esses momentos se perderão no tempo,
como lágrimas na chuva.
Hora de morrer
"

- Roy Batty

Comentários (24)

wolmor teixeira | sexta-feira, 08 de Maio de 2015 - 06:46

Ótima crítica cunha, assisti o filme ontem depois de sei lá quantos anos por causa da crítica.Concordo com a ideia do Deckard ser um replicante. A única coisa que eu acrescentaria é que achei que o filme foi do Hauer, o personagem Roy Batty é fantástico e a interpretação do ator é perfeita.

Leonardo | sábado, 09 de Maio de 2015 - 17:53

Essa frase final é muito marcante. Parabéns pela critica.

Lucas Aragão | segunda-feira, 16 de Janeiro de 2023 - 22:17

"..são a perfeita representação de uma visão pessimista de onde o capitalismo pode levar à população"

Perfeitamente explicável, já que em 1982 o mundo vivia o auge da pujança socialista...

Textos bonitinhos em mentes tão manipuladas. Nada além de triste e profundamente lamentável.

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