Filme sobre garoto que vive mais no mundo virtual do que no real, além de bem dirigido e interpretado, reflete realidade atual de muitas pessoas.
“Para os seres atentos, o mundo é um só”.
Heráclito
Nunca se viu tempo onde essa frase fizesse maior sentido do que o presente, onde as tecnologias virtuais gradativamente proporcionam (ou causam?) mudanças de aspecto extraordinário em nossa sociedade.
Ben apenas é uma das muitas pessoas que, infelizes com a própria realidade, se apegam a esse mundo virtual deixando em segundo plano suas legítimas vivências. “Ben X” fala sobre Ben e seu grau de envolvimento com o jogo Archlord e os desdobramentos implicados pelo mesmo em seu cotidiano, somados com o que o torna ainda mais desigual perante aos outros: a síndrome de Asperger, uma espécie mais leve de autismo.
A premissa por si só, que já é genial, quando inserida no roteiro e direção visionários de Nic Balthazar é levada a proporções fantásticas. O roteiro de Balthazar é complexo, porém guiado de forma branda e muito bem resolvida. As questões levantadas por sua narrativa vão desde o amplamente discutido conceito da virtualidade contra a realidade até a abnegação do ser ao seu “eu - próprio”, quando sugere o descarnamento de Ben perante a ficcionalidade de seu jogo.
Greg Timmermans, o intérprete de Ben, desenvolve seu personagem de forma brilhante e coesa, e deixa em evidência juntamente com o trabalho de Balthazar as dificuldades enfrentadas por seu personagem, dada sua condição. Ben já seria um pária por viver fantasiando seu dia-a-dia, e isso somado à síndrome que o afeta gera incompreensão por parte de seus colegas de escola, o que provoca conseqüências extremamente lamentáveis.
Se for difícil para o espectador compreender as ações de Ben, basta analisar a febre que causa jogos como “Second Life” ou mesmo os semelhantes ao Archlord (que realmente existe), como “World of Warcraft” e “Ragnarok”. O jogador vive uma outra realidade e passa a se relacionar com outros jogadores, a fazer amigos e compartilhar experiências, porém muitas vezes sem nunca ver ou falar diretamente com a outra pessoa. Essa possibilidade muitas vezes causa o afastamento da pessoa de sua realidade, e com Ben isso é potencializado também por sua condição psicológica.
Em sua direção Balthazar se arrisca e inova, ao utilizar uma técnica chamada Machimina (híbrido de machine cinema, ou cinema maquínico), que consiste na utilização de atores criando interpretações para personagens virtuais do jogo Archlord. Toda a seqüência inicial de “Ben X” e diversas outras de grande importância para a trama são geradas através dessa técnica, o que em nenhum momento torna o filme enfadonho ou causa estranheza. Da forma com que são inseridos e dispostos na história, são de fundamental importância, como na cena onde Ben divaga sobre a facilidade com que um personagem pode ganhar os atributos físicos que seu criador desejar, enquanto se olha no espelho e analisa sua própria fisionomia, com certo desgosto. Uma outra opção do diretor que é acertada, a de trabalhar com depoimentos dos personagens secundários que vez ou outra interrompem sua narrativa, gera expectativa ao público que espera saber qual a utilidade de tais cenas para o filme. Se por vezes os comentários são repetitivos e o recurso não seja inovador, o todo e principalmente o desfecho da trama compensam essas pequenas seqüências.
O que assusta, e pode causar certas crises de consciência ao espectador de “Ben X” diz respeito à forma com que nós vivemos nossas realidades. Estou escrevendo esse texto fazendo o uso de uma tecnologia virtual, não palpável. E você leitor, faz parte da mesma realidade, lendo os mesmos escritos através desse meio cibernético. O filme aqui analisado, por mais que supostamente seja baseado em fatos, é irreal, fictício, assim como o cinema (salvando a produção documental, porém não em sua totalidade). Estaríamos por tanto vivendo um simulacro, onde o real fica em segundo plano pelo tempo necessário para que se viva a realidade de outrem.
Como se pode então criticar Ben ou outras pessoas por recusar o real e se apegar tanto no virtual sendo que nós próprios, aficionados a um meio em comum, o cinema, deixamos de lado nossa realidade para cultuar algo não concreto? Existem muitas teses que responderiam essa questão através de diversas perspectivas, porém não se faz necessário expressar minha opinião própria a respeito, já que cabe a cada um, quando o interesse existir, refletir sobre as razões que o faz despregar-se de seu “eu próprio” para viver o fascinante ficcional do cinema.
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