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Críticas

Cineplayers

Desnudando o pecado.

8,5

Simples e objetiva, a história de Ferrara inpirada pelo escândalo de estupro de Strauss-Khan revolve em volta de um único acontecimento e não deixa espaço para ambiguidades na interpretação. O conflito entre carne e espírito é uma constante em seus filmes, o que faz com que a observação quase imparcial da câmera deixe o tempo imperando em ritmos de blocos temporais sobre seus ambientes, tornando a câmera um dispositivo de registro do personagem e de seu conflito detonado pelo peso de suas ações, recusando a encenação de antagonismos e dilemas que envolvam narrativas paralelas, o recorte plástico e didático dado à ação e a fragmentação entre várias imagens repletas de potencialidades. Aqui, o protagonista Devereaux é exilado do Éden econômico e político por, inebriado pelo poder financeiro, estatal e libidinoso que representa, ir mais além disso do que todos os seus companheiros de excesso e de fato cometer um crime.

Futuro candidato à presidência da França, Devereaux equilibra-se entre a figura pública, respeitável e íntegra, e a pessoal, animalesca, grotesca e destruidora. Esse êxodo do paraíso, por ser aproveitar-se de seu poder dito civilizatório para ser baixo, faz com que o político tenha de encarar suas próprias vergonhas – além da mera nudez física, também a tomada de conhecimento de suas vergonhas diante do público.

Em uma história onde é claramente definido o que é moralmente errado – só não são claros e definidos seus tempestuosos indivíduos que a câmera obriga a encarar – fica difícil não ter a leitura de Ferrara como um criador de parábolas modernas, com um tema espinhoso e dolorido: a cultura de excessos, dos vícios, do delírio e posteriormente a criação de um calvário onde frequentemente o falho ser humano tem que se imolar. Aceitação, resignação, sangue e dor são a única via de saída de reconstrução de personalidades em cacos que tornam os filmes que protagonizam erráticos como elas: o fio condutor é estendido em longos silêncios e imobilidades expositoras, pela imputação das elipses e pela economia austera nos cortes. A mesma imagem adquire diferentes significados concentrada em um só tempo e recortada em poucos enquadramentos – ou seja, a a funcionalidade de seu material dialético se dá pelo tempo, pela longa exposição. Quantos menos se contar, mais irá se mostrar.

Este é o “grotesco revelatório” de Ferrara. Apesar de isso poder ser a princípio, uma contradição – afinal, um pretende ressaltar certas características do que é real fora de sua proporção original para chamar a atenção do olhar ao efeito pretendido, enquanto o outro não quer intervir, julgar ou modificar, apenas observar – é um paroxismo que faz sentido dentro da carreira do diretor saído de filmes de grande capricho estético, conjugando trabalho coreografado de câmera e recursos de montagem (paralelismo narrativo em perseguições, câmera lenta em momentos dramáticos, etc)  como Inimigos Pelo Destino, Sedução e Vingança e Cidade do Medo, teve uma maturação com filmes cultuados dos anos noventa como O Rei de Nova York e Vício Frenético, já lançando mão do abuso da temporalidade sobre a ação, do efeito plástico sobre o artifício, da fragmentação narrativa episódica sobre a simplicidade apresentação-conflito-resolução, para então na década de 2000 desembocar em filmes que estavam no limiar da encenação e do documento, como Napoli Napoli Napoli, que influenciariam de forma retroativa sua ficção, como se pode observar em e agora em Bem-Vindo a Nova York e seu trabalho minimalista de câmera e iluminação, os longos silêncios e as cenas organizadas não em crescendo, mas em longos blocos temporais um freak show que em outras mãos receberiam um tratamento preocupado com a especularização didática e a constante demanda por atenção através das revoltas.

Ferrara sempre quis funcionar diferente e quando progressivamente despediu-se do filme confinado em um gênero descobriu um norte estético combinado com uma lógica de produção quase artesanal em sua simplicidade formal que foi um verdadeiro redescobrimento dificilmente encontrado em seus contemporâneos setentistas – perdidos em sua maioria entre um ostracismo engessado em questões dos anos setenta ou adesão à Grande Forma em projetos comerciais que pouco parecem dialogar com as transgressões promovidas por eles que os catapultaram à fama popular, mainstream ou de nicho, e prestígio crítico.

É sentida essa diferença de maneira marcada não apenas em seu primeiro terço, uma encenação desgovernada sem nenhuma pretensão de ser objetiva e dramática da rotina de orgias de Devereaux, mas quando o mesmo é detido e um longo grande plano o assiste tirar a roupa – porém não da maneira vista anteriormente, onde usa seu apetite sexual como instrumento de poder e afirmação, da linha dissolvida entre a subjetividade de sua vida pessoal e a objetividade requerida para ocupar o cargo que ocupa – tal como acontecia com a confusão entre família e máfia em Os Chefões que decretavam de forma fatalista a tragédia de seus personagens. Desta feita, o desnudamento é tal como a câmera, neutro, investigativo e lento. Descobrindo pouco a pouco cada centímetro de pele por trás do personagem de figurão respeitável da alta sociedade encarnado por Devereaux. Os diálogos são poucos e irrelevantes. A ação é simples e única. Essa exposição é incômoda em seu tom  de revelação, de quebra da identificação psicologizante tradicional, da falta de um diálogo interno explicitado da maneira demandada pelo drama, da necessidade de encarar o  seu pecado capital de forma concreta e nada além.

Em filmes guiados por exposições de culpa e questionamentos de dogmas, a língua em que Ferrara tenta se expressar é de conciliar justamente a noção do errôneo sempre presente em seus filmes desde o início com a observação sem juízo de valor. A conversa que tem com sua mulher Simone, com sua carga de fala entrecortada, ruídos incompletos e silêncios carregados de tensão, em um isolamento de fatores externos senão o aprofundamento do que se passa pela cabeça de Devereaux, da falta de uma linha dramática clara, liga Ferrara às pretensões do cinema contemporâneo, ainda que ao seu modo, onde ainda impera a noção de caráter, na acepção de personagem: o papel que o político está fadado a repetir de maneira incontornável (mais à frente do filme, há outra encenação de estupro igualmente incômoda), moldado o cargo que preenche e sua relação com o poder ao seu desejo, à sua incapacidade de autocontrole, a sua tentativa de interpretar papéis mais domesticados e civilizados e, novamente, o erro.

Devereaux cometeu um crime terrível que veio a público. O olhar da câmera o descobriu. Ele não é mais um personagem impune. Perito em tirar humanos da zona de ofuscação e descobrir na luz os monstros recalcados, conflituosos e angustiados que escondem. Para quem quiser ver a nossa falta de beleza, integridade e divindade, para aquele que quer sentir-se desafiado em entender algo absurdo irracional, em Bem-Vindo à Nova York Ferrara tornou o pecado nu aos nossos olhos.

Comentários (7)

Lucas Souza | quinta-feira, 04 de Setembro de 2014 - 08:50

Texto perfeito, Brum! [2]

Caio Henrique | quinta-feira, 04 de Setembro de 2014 - 09:30

Filme foda! Texto foda!

Landerson DSP | quinta-feira, 04 de Setembro de 2014 - 12:21

Que coisa linda, na moral. O texto, o filme ainda não vi.

ÉLE EME TÊ | sexta-feira, 05 de Setembro de 2014 - 01:47

o melhor filme dele é asterix e obelix contra césar

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