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Beijo Roubado, Um

(My Blueberry Nights, 2007)
6,8
Média
249 votos
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Sua nota

Críticas

Usuários

De Canção em Canção

8,0

Já se passou tempo o suficiente desde que o cineasta chinês Wong Kar-Wai se aventurou a fazer cinema nos Estados Unidos, com Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights, 2007), para que seja possível olhar o projeto com uma perspectiva mais distanciada. À época um diretor de grande destaque no panorama do cinema mundial, tendo inclusive vencido prêmios importantes no festival de Cannes e no César, ele trilhou o caminho de muitos estrangeiros ao tentar a sorte em Hollywood, com um orçamento maior e um elenco de estrelas. Mas o resultado não foi o acolhimento que outros como Ang Lee, Alfonso Cuarón ou Fernando Meirelles receberam. Pelo contrário, Um Beijo Roubado teve uma recepção fria por parte da crítica, não funcionou com o público, e acabou servindo como passagem de volta do diretor para a China.

Isso tudo é uma pena, pois hoje o filme parece melhor compreendido e vem ganhando um status de cult. Kar-Wai não teve medo de trazer consigo sua identidade e não se curvou muito ao cinema verborrágico de Hollywood, tecendo sua história em cima das belas composições de imagens e na eclética trilha sonora, que passa por Ry Cooder, Otis Redding, Neil Young e Gustavo Santaolalla, incorporando alguns desses intérpretes/compositores como atores do filme, como Cat Power e a protagonista Norah Jones. Ficava claro pela curiosa escalação de elenco que a música teria uma função primordial na narrativa, dando conta de pontuar as emoções dos personagens melhor do que através de qualquer diálogo, como no momento em que o personagem de David Strathairn chora pela frieza e crueldade com que é dispensado pela ex-esposa (vivida por Rachel Weisz), ao som de Try a Little Tenderness.

O interesse de Kar-Wai está justamente na solidão desses personagens, aprisionados em si mesmos e justamente por isso abandonados e isolados no ambiente noturno, urbano, de uma Nova York iluminada pontualmente pelo neon dos letreiros, quase sempre enxergados através de vitrines desenhadas e borrões de luzes de faróis. A solidão dos apaixonados, a dor do amor não concretizado, é o que rege a maior parte dos dramas do diretor, como em Amores Expressos (Chong Qing Sem Lin, 1994), Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit, 1997) e Amor à Flor da Pele (Fa Yeung Nin Wa, 2000), com seus borrões impressionistas e multicoloridos traduzindo essa perdição inerente à paixão.

O que impressiona e se diferencia aqui, no entanto, é o caráter incompleto da narrativa, focando nos corações partidos de apenas um lado da relação. Nunca somos apresentados ao namorado que abandonou a personagem de Norah Jones ou ficamos sabendo o motivo do término, nunca entendemos em detalhes a relação no passado eu existiu entre Jeremy (Jude Law) e Katya (Cat Power) e nunca fica claro o motivo de Leslie (Natalie Portman) ter rompido contato com seu pai. O único relacionamento explorado bilateralmente é o de Arnie e Sue Lynne, e mesmo assim ele é explorado em cima dos desencontros de sentimentos entre os dois: ele a ama desesperadamente mesmo após o fim do casamento, mas ela só se percebe ainda apaixonada por ele quando o perde para sempre.

Por consequência, a narrativa quase mosaica se apoia nos encontros casuais desses personagens quando seus núcleos se esbarram, ou quando os quebrantados se enxergam através da empatia, em uma espécie de clube dos corações partidos – todos estranhos, desconhecidos, mas capazes de perceber e reconhecer um no outro o mesmo tipo de solidão incurável. Quem busca romper essa casualidade é a protagonista de Norah Jones, uma garçonete que viaja pelo país atrás de um novo propósito, e acaba o mesmo ponto de partida, comendo as tortas de mirtilo do bar de Jeremy, seu confidente e único amigo do mundo.

O mais interessante nessa história é que Wong Kar-Wai só poderia conta-la se fosse em território americano, pois o deslocamento e o sentimento de perdição são os combustíveis principais para sua narrativa, e a pluralidade musical e regional dos EUA é facilmente reconhecida por qualquer espectador mundo afora e também reflete o caráter exploratório de um diretor que se aventura pela primeira vez no território, na cultura e no cinema ocidental. Aqui, ele também se encontra perdido e aplica sua profusão de tintas e cores e luzes de maneira muito mais inconsequente e experimental em cima de um diferente tipo de cinema, tentando se encontrar nesse novo cenário cultural, e que bom que o tempo tenha provado que essa excursão tenha expandido a riqueza de uma obra que nunca deixou de deslumbrar.

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