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Críticas

Cineplayers

Um filme noir da primeira leva, criando personagens sujos e dando adeus à inocência nas telas. Perfeito retrato de sua época.

7,0

O Beijo da Morte é um filme noir conhecido por uma cena que se tornou antológica, quando o personagem de Richard Widmark, ator morto recentemente, empurra escada abaixo uma mulher paralítica. Widmark faz o assassino louco que divide temporariamente a cela da prisão com o personagem de Victor Mature, preso por um assalto a uma joalheria que terminou como 20 anos atrás aconteceu com seu pai: levando um tiro (na perna) dos policias.

Em tese, a trama do filme é essa. O personagem de Mature, Nick Bianco, vai preso por conta do assalto malogrado. Sua mulher comete suicídio, as filhas vão para um orfanato. Ele fica sabendo que a esposa tinha um caso com um dos criminosos envolvidos no crime e resolve delatá-lo à polícia, ganhando uma diminuição da pena. Ele sai da prisão, tenta reconstruir a vida, mas os mafiosos são inocentados pelo júri e vão atrás de Nick para se vingar. 

Trata-se de um filme noir da primeira leva, cujos dilemas morais interessam mais que a trama ou as interpretações, no caso sofríveis, da maioria do elenco. Não ter bons atores nas mãos era comum no início do cinema noir. Poucos diretores tiveram, uma vez que as estrelas de Hollywood se recusavam a interpretar assassinos, ladrões, crápulas, prostitutas, presidiários e larápios de toda sorte – a grande exceção, pelo menos até o gênero se popularizar, foi Humphrey Bogart. 

É quando brilha o talento de Richard Widmark, repetindo infinitamente a palavra “squirt” (que significaria alguém desprezível), na cena em que se vangloria de ter sido indiciado por um assassinato, quando ri lunaticamente e quando humilha todos que estão ao seu lado. Widmark fez vários filmes noir, entre alguns dos melhores, como Sombras do Mal, de Jules Dassin (também morto recentemente). Como disse o editor Régis Trigo na biografia que escreveu de Widmark quando da morte do ator, ninguém se lembra que Victor Mature era o personagem principal. 

Com O Beijo da Morte, como ressalta Régis, Widmark recebeu sua única indicação ao Oscar, apesar de ter sido um dos grandes atores do pós-guerra – a culpa em parte foi ter feito muito filmes noir, considerados então de segunda linha, até os franceses perceberem o talento e recuperarem as obras. Conseguiu o Globo de Ouro de melhor promessa masculina, categoria que nem existe mais – afinal, era seu estréia no cinema. O roteiro original de Eleazar Lipsky foi igualmente nomeado ao prêmio da academia.

Henry Hathaway dirigiu Kiss of Death com elegância e parcimônia mesmo nas cenas mais violentas – estou me referindo, claro, ao bárbaro assassinato da paralítica. Hathaway compensa as falhas do elenco (a mocinha, uma tal de Collen Gray, é uma tristeza) com uma trama narrada de maneira clara e eficaz, sem os excessos pelos quais ficariam conhecidos os filmes noir da década de 50 em diante. 

A mulher de Nick deveria ter sido espancada e estuprada pelo gângster encarregado de tomar conta dela até a saída de Nick da prisão, mas a cena foi cortada por pressão da censura, assim como a morte de Nick, a única forma de levar o sádico Udo para a prisão – uma narração em off sugere que ele sobreviveu ao tiroteio.

Enfim, o cinema noir nascia nos EUA (o filme é de 1947), um dos gêneros mais interessantes e prolíficos da sétima arte. Afinal, os EUA da II Guerra, pós-crack da Bolsa, um país empobrecido, corrompido pela máfia, surgia bem diferente nas telas. A inocência dava seu adeus das telas e a arte escapista das massas amadurecia, dando mais um passo para seu esplendor. Viriam outros filmes noir melhores, mas o início começou com filmes vigorosos como este, sem o brilho das grandes obras, mas perfeito retrato de sua época.

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