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Críticas

Cineplayers

Adeus à linguagem.

8,0
Em um momento muito marcante de Beduíno (idem, 2016), novo longa de Julio Bressane, a personagem de Alessandra Negrini dorme atormentada por um sonho que vem se repetindo ao longo das últimas noites, envolvendo as cordas e nós que prendem um navio ao porto. Conforme o sonho vai se intensificando, a mulher vai ficando cada vez mais agoniada, como que sentindo aquela corda lhe enforcando. Na tomada seguinte, essas cordas misteriosamente estão materializadas no plano real, entrelaçando Negrini na cama como se de alguma forma tivessem vazado de sua mente e conseguido alcança-la fora do território onírico. 

Em um filme passível de muitas leituras e interpretações, essa cena acaba servindo como um norte em meio ao caos. Adepto de uma linguagem lírica e nem sempre lógica ou linear, Bressane aqui realiza um de seus filmes mais sensíveis e radicais, uma desconstrução literal de linguagem seguida de uma amálgama de música, teatro, poesia ficção, documentário e, claro, também cinema. Negrini e Fernando Eiras, dois atores fantásticos e totalmente mergulhados na proposta do diretor, assumem muitos papéis e personagens enquanto parecem estar escrevendo em tempo real toda aquela encenação, como se a ideia saísse da cabeça deles e imediatamente já tomasse forma concreta no ambiente. 

E são muitas essas ideias, por isso o filme se fragmenta inteiro em cacos narrativos diversos, seja em monólogos, diálogos sobre os mais variados temas, seja em divagações e reflexões pessoais, seja em encenações dramáticas de gêneros, como suspense, romance, comédia, musical, drama e guerra. Na tentativa de construir um plano onde realidade, ficção, sonhos e memórias interajam naturalmente entre si, Bressane passeia pelos cômodos de um apartamento erigindo um belo mosaico que se cria, se reconfigura e renasce sozinho enquanto se inventa e se descobre. Nesse meio tempo, revisita sua própria filmografia (com uma nova encenação improvisada a partir de trechos de Memórias de um Estrangulador de Loiras [idem, 1971]) e seu foco principal parece justamente usar desse formato para discutir as fronteiras do cinema e a alteração de suas formas e consistência quando em contato com outras artes, como a literatura, a poesia e a música. 

Toda a ideia do beduíno que nomeia a obra surge em um desses diálogos entre Negrini e Eiras, mas ao mesmo tempo também transmite o conceito da mudança, do nomadismo, da travessia de fronteiras, que é exatamente o que Bressane faz nesse filme delicado e imaginativo que em meio a tantas experimentações discute temas como a morte, a finitude e a efemeridade e como o cinema por si só acaba por combatê-las através da imagem que perpetua os pensamentos para a posteridade, mesmo aqueles mais abstratos ou inalcançados pela palavra escrita. Sempre sensível, mais uma vez o diretor (re)constrói um filme de amor ao poder e às possibilidades infinitas do cinema. 

Visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


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