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Críticas

Cineplayers

Muita ambição para pouco filme.

5,0

As retrospectivas cinematográficas servem essencialmente para que o público possa reavaliar as obras de determinados diretores sob a perspectiva do tempo, descobrindo nomes desconhecidos ou subestimados, cujas filmografias não foram compreendidas na sua época. Ironicamente, é bem possível que um festival sobre Giuseppe Tornatore provoque o efeito inverso. Seu Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988), realizado no fim dos anos 1980, é uma quase unanimidade de crítica. O drama Estamos Todos Bem (Stanno Tutti Bene, 1990), se não estava no mesmo nível, foi bem recebido pelo público (e até refilmado nos EUA). Uma Simples Formalidade (Una Pura formalità, 1994) revelava um diretor mais maduro. Mas aí vieram O Homem das Estrelas (L'Uomo delle Stelle, 1995), A Lenda do Pianista do Mar (La Leggenda del Pianista Sull'oceano, 1998) e Malena (Malèna, 2000). Se não eram desastres completos, eram inócuos demais para serem levados a sério. O nariz torto começou a aparecer de fato com o suspense A Desconhecida (La Sconosciuta, 2006), uma estranha tentativa de imitar o estilo de Hitchcock. O filme era tão distante do restante do currículo de Tornatore, que muitos começaram a pensar: será que esse cara é tudo o que falam? Baaria – A Porta do Vento (Baarìa, 2009), seu projeto mais pessoal, ambicioso e caro realizado até o momento, pode servir para confirmar as suspeitas de que, bem antes de Fellini, Visconti ou Bertolucci, Tornatore sempre esteve mais próximo de ser um Franco Zeffirelli com grife.

Baaria – A Porta do Vento começa com um grupo de garotos jogando pião. Um deles é chamado por uns velhos sentados ao redor da mesa de um bar ao lado. Eles pedem ao menino que compre um maço de cigarros. Em troca, prometem lhe dar 20 liras. O garoto sai correndo pelas ruas da cidade. Repentinamente, ele começa a voar. Lá de cima, observa Bagheria – ou Baaria, no dialeto sicliano. Entra o flash-back. O realismo mágico serve para Tornatore começar a contar a história de três gerações da sua família.

O primeiro a ser retratado é seu avô, Cicco Torrenouva. Cicco é um dos poucos homens letrados da região. Na sessões de cinema de sábado à noite, ele é praticamente o único que consegue ler o entretítulos dos filmes em exibição. Seu gosto é apurado. Além de cinema, freqüenta o teatro e carrega consigo títulos de Shakespeare e Manzoni. É também conhecido por sua grande força nos dentes, por meio dos quais consegue levantar objetos extremamente pesados. Essa virtude lhe garante algum dinheiro em apostas. Mas apesar da cultura e da esperteza, Cicco não tem condições de sustentar seus dois filhos. A Tornatore interessa nos contar a história do mais novo, Peppino, provavelmente baseado em seu próprio pai.

Cicco manda Peppino passar alguns meses com seu tio, ajudando-o no pastoreio das ovelhas. O tempo passa e ele retorna à cidade. Trabalha alguns meses ordenhando leite diretamente da vaca. Já adolescente, observa as injustiças e as diferenças sociais que se instauram na Itália do pós guerra. Começa a se envolver com política. Ele que, quando criança, não tinha condições de entender o significado do nascimento da onda fascista na Itália, agora vê na República e no Comunismo um instrumento de mobilização política para a solução desses problemas. Durante as reuniões com o partido, comícios e manifestações, Peppino conhece Maninna, o grande amor da sua vida. Ao final, Tornatore ainda encontrará tempo para falar de si mesmo, na figura de Pietro, um dos filhos de Peppino, apaixonado por cinema.

Para um projeto tão pessoal e autobiográfico quanto esse (não são poucos críticos que o compararam – ao menos nas intenções – com Amarcord [Amarcord, 1973], de Fellini, e 1900 [Novecento, 1976], de Bertolucci) -, surpreende como Tornatore não tenha conseguido transmitir a paixão necessária para que o público embarcasse na sua história. Esse sentimento de distanciamento e frieza em relação ao filme talvez se deva principalmente ao excesso de ambição do diretor, que quis incluir em sua obra mais que do que ela suportava. Resultado: para dar conta de todos os tipos, fatos e lendas que permearam a infância e a adolescência de Tornatore, a narrativa de Baaria parece apressada. Consequentemente, nenhum dos personagens é adequadamente desenvolvido. Com tantas informações pipocando pela tela, sem muita ligação lógica entre elas, o interesse da platéia se arrefece em poucos minutos. Tornatore deveria ter considerado seriamente a hipótese de transformar seu filme numa mini-série para a televisão italiana.

A estrutura do filme também não ajuda. Se bem repararmos, o filme é narrado por uma série de vinhetas, todas elas separadas pelo recurso do fade-out. Se a idéia era assemelhar cada uma dessa historietas a lampejos de recordação do passado, que vem e vão como flashes em nossas memórias, o artifício não deu certo. Antes disso, o escurecimento da tela transmite uma sensação de que parte da narrativa foi quebrada antes do tempo, de que havia algo a contar, de que os personagens ainda tinham coisas a dizer. Esse avanço da história antes da hora gera uma impressão constante no espectador de que o filme esta correndo mais rápido do que deveria. É o preço que se paga pelo excesso de ambição.

Outro problema de Baaria é a sua indefinição quanto ao tom geral de obra. Determinadas sequências são construídas num formato estritamente dramático, o que é quebrado, em seguida, por uma piada visual ou um diálogo mais engraçado. Isso acontece, por exemplo, na cena em que a mulher de Peppino e a vizinha aguardam o retorno de seus maridos dos confrontos abertos que vem ocorrendo em nome de melhorias sociais no país. Desde o seu  início, quando eles partem em calçadas opostas, até o momento que as esposas os esperam na porta das respectivas casas, o tom é pesado, quase solene. O público pensa que algo de grave pode ocorrer. No entanto, quando ambos retornam, Tornatore não só abandona a personagem da vizinha e do seu marido, como também quebra a dramaticidade da sequência, ao transformar a recepção de Peppino por sua família em algo cômico. A mudança repentina do sério para o engraçado dispersa a platéia, que perde a real intenção do diretor com a cena.

Baaria também tem sua cota de sequências desnecessárias, que não acrescentam nada à narrativa. Considerando que o protagonista é Peppino, Tornatore poderia ter suprimido todos os primeiros 30 minutos do filme, em que o filme se concentra apenas em Cicco, um personagem que logo se revela secundário na trama. As cenas em que vemos os bastidores das filmagens de uma obra de Alberto Lattuada, não explicam a paixão de Pietro pelo cinema. O realismo mágico contido em algumas passagens do roteiro também não ajuda. A lenda do tesouro que se esconde sob as três montanhas é anticlimático, e o retorno da avó da Maninna como uma espécie de vidente não leva a lugar algum.

A direção de arte é suntuosa (as gravações foram realizadas num imenso set na Tunísia), a fotografia é solar (ela realça as ventanias que assolam constantemente a cidade), e a trilha sonora, composta novamente por Ennio Morricone, é épica. Ironicamente esse apuro técnico provocam o efeito inverso, tornando o filme ainda mais falso e piegas. Forma não caminha sem conteúdo.

Mas nem tudo fracassa em Baaria. O roteiro tem algumas costuras refinadas (como a união entre a cena dos dentes de Cicco com o focinho do burro que ele pretende comprar e as serpentes escuras e os tubos que lhe levam o soro). Além disso, em cenas como a do casamento de Peppino e Maninna (em que os fiéis da igreja não acompanham a cerimônia mas sim comentam os destinos dos moradores da cidade que serviram de modelos para os afrescos do teto); na elipse entre a infância e a adolescência de Pietro (em que o vemos colecionando películas de filmes antigos); e na avaliação de Peppino quanto ao tamanho da saia da filha, Tornatore alcança os objetivos desejados. O filme como um todo melhora em sua última parte, quando acompanhamos Peppino já cinqüentão, desiludido com a política. Ao final, Baaria se salva do completo desastre.

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