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Críticas

Cineplayers

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

7,0

Há um impasse que coloca o jovem Pi (Suraj Sharma) em um dilema durante quase toda a duração de As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012): ele e um tigre de bengala adulto e faminto foram os únicos sobreviventes de um naufrágio no meio do Oceano Pacífico. Não é preciso explicar qual o primeiro e mais óbvio problema encontrado nessa situação delicada, mas o que projeta esta história para além de seu mote inicial é a discussão de um tema muito maior do que o instinto de sobrevivência. Mais do que encontrar um jeito de conviver com uma fera selvagem em um espaço útil tão reduzido, Pi precisa de uma razão para lutar, e acreditar que pode sair daquela situação com a ajuda de uma força maior.

Apesar do teor religioso presente em seu cerne, em especial por conta do conteúdo do livro em que se baseia, As Aventuras de Pi acaba se mostrando mais válido quando aposta em outros temas. Depois de um primeiro ato meio morno, porém necessário, o filme parte para sua atração principal, com base nos temas levantados inicialmente, sobre a insaciável sede de Pi por conhecer mais a Deus, entender os porquês dos porquês, e descobrir alguma ligação entre as tantas religiões que decidiu conhecer. Tal ligação parece ser a fé naquilo que não podemos ver, mas que de alguma forma podemos sentir cedo ou tarde em maior ou menor intensidade. Então, teoricamente, depois de perder sua família no naufrágio e se encontrar sozinho em um vasto oceano empestado de tubarões na companhia de um tigre dentro de um bote minúsculo, Pi deverá acreditar em sua força interior para sobreviver, buscando ajuda em sua fé em Deus.

Na teoria isso tudo pode ter algo de heroico, profundo ou mesmo teológico, mas na prática o diretor Ang Lee acabou acertando de verdade naquilo em que não estava mirando. Podemos notar isso quando deixamos de lado toda essa aura espiritual que permeia o filme, realçada por ensinamentos e provérbios indianos que parecem sempre tão sábios em território ocidental, e ficamos apenas com o bruto da situação. Mais especificamente, quando percebemos que toda a luta de Pi para arranjar um jeito de coexistir com o tigre, mesmo depois de desperdiçar diversas oportunidades de simplesmente se livrar do animal, nada mais é do que uma luta para não perder sua única companhia. Richard Parker, o tigre em questão, figura neste filme não como uma metáfora exótica sobre a luta do homem contra a natureza, ou sobre o poder da fé, mas sim como uma cura momentânea para a solidão do homem. Mais perigoso do que ser devorado por Richard Parker é ser largado naquele vasto oceano, sozinho consigo mesmo. A solidão é o que de fato assusta Pi e, para fugir dela, o garoto fará de tudo para preservar vivo seu único amigo.

De certa forma, essa sempre foi uma questão muito permanente no cinema de Ang Lee. Antes de um casal de cowboys gays apaixonados, os protagonistas de O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005) não passam de duas almas solitárias, encontrando um no outro algum tipo de apego em meio a tanta frieza. Antes de amantes sofridos em período de guerra, o casal principal de Desejo e Perigo (Se, Jie, 2007) se mostra uma união de dois seres assustados com a situação que os rodeia, e que encontra um no outro alguma chance de vencer o medo e a solidão. Para as irmãs de Razão e Sensibilidade (Sense and Sensibility, 1995), a companhia de um homem é a única escapatória para um destino de eterna solidão, agora que não possuem mais um pai ou uma figura masculina necessária, tão essencial para a época, para cuidar dos assuntos da família.  Mesmo em sua escolha de adaptar a história do herói Hulk para as telonas se mostra de acordo com sua sensibilidade e minimalismo para explorar a alma de personagens que se encontram em ambientes de extrema frieza e potencial perspectiva de futura solidão.

Não é de se admirar então que toda a técnica vislumbrante (o tigre computadorizado é de um realismo impressionante), todo o apuro visual, e toda a beleza das imagens compostas por Lee nada mais sejam que recursos periféricos para enfeitar uma história que, no fundo, é exatamente a mesma contada pelo cineasta em boa parte de sua trajetória. Portanto, não é aconselhável se deixar levar pelos discursos de teor religioso (que no começo transitam em território neutro, mas que do meio para o final claramente tendem para a apelação de que todos devem acreditar em Deus, haja o que houver), pois isso pode se mostrar uma faca de dois gumes; para alguns um ponto em comum que com certeza enriquecerá a experiência, enquanto para outros talvez soe irritante e por vezes desrespeitosa.

Talvez a intenção de Lee não fosse exatamente essa, de focar na solidão de Pi, mas com certeza foi nessa abordagem que ele acertou em cheio. Tanto que o tigre acaba assumindo um poder de captar a atenção do espectador do começo ao fim, não necessariamente por sua natureza exótica e perigosa, mas por despertar em nós o mesmo sentimento que desperta em Pi, de estar sempre alerta prezando pela segurança do personagem, o que de certa forma o mantém vivo e desperto para continuar. Desistir de sua própria vida implicaria em deixar Richard Parker morrer também, assim como simplesmente arranjar uma maneira de matar a fera seria uma forma de suicídio para Pi. E perder Richard Parker em toda sua exuberância visual seria devastador para a história em si, para o próprio Pi e principalmente para nós, que nos veríamos ali sozinhos naquela imensidão azul, mais solitários e miseráveis do que nunca.

Comentários (22)

Angelão | segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2013 - 08:42

É isso mesmo que tu colocou Heitor. São as relações primárias que criam no sujeito a auto-confiança, por isso, essa nossa necessidade de interação afetiva e com o menino não é diferente. Quando não conseguimos encontrar um parceiro real de relação afetiva, acabamos por virtualizar em algum objeto ou animal tal relação (é o caso de pessoas solitárias que cuidam de animais como se fossem filhos). É uma pena que o fraco roteiro apenas intuiu isso e preferiu focar na questão religiosa que, no contexto do filme, tem pouco sentido. De qualquer modo, um bom filme.

Rodrigo Torres | terça-feira, 05 de Março de 2013 - 18:03

"Com relação à segunda versão da história que o protagonista conta perto do final, me pareceu que ele mentiu. A verdadeira história foi mesmo aquela que acompanhamos desde o início do filme."

Não tenho dúvidas disso.

Tiago Câmara | domingo, 14 de Abril de 2013 - 01:33

Não vi no filme uma tendência apelativa de que todos devam acreditar em Deus "haja o que houver".

Luiz F. Vila Nova | sexta-feira, 02 de Janeiro de 2015 - 14:17

Não vi no filme uma tendência apelativa de que todos devam acreditar em Deus "haja o que houver". (2)

Até porque no final, após as duas versões de Pi, fica claro que cada um deve acreditar no que lhe for mais conveniente (fé ou razão).

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