Saltar para o conteúdo

Atlantique

(Atlantique, 2019)
6,7
Média
43 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Mergulho em águas turvas

7,0

No mundo imaginado pela diretora Mati Diop em Atlantique (idem, 2019), há espaço tanto para a retrato social quanto para o cinema fantástico. Existe o exercício de gênero e existe o deslumbramento de uma cineasta cheia de virtuose, capaz de explorar um sem-número de recursos visuais e sonoros que os nossos olhos acostumados ao cinema americano e europeu ainda não reconhecem com tanta familiaridade. Por outro lado, aos poucos, também se revela uma obra permeada por alguns vícios narrativos que não combinam tanto com a experiência sensorial que ela tenta imprimir ao reimaginar um Senegal mergulhado em um ambiente de horror e fantasia.

Atlantique tem um início promissor e, depois de sua primeira meia hora, vai desandando por caminhos que podem parecer surpreendentes em uma primeira visão, mas que na verdade são apenas confusos e mal-ajambrados. Tramas paralelas que pouco se conversam e um núcleo investigativo que quase nada acrescenta dispersam a trama inicial bastante forte e interessante sobre o romance proibido de Ada e Souleiman, além da interessante inserção fantástica dos espíritos dos homens mortos no acidente no mar durante uma viagem em busca de melhores condições de vida. Todo um desenho e retrato social nasce desses dois lados mais bem desenvolvidos, com a morte dos trabalhadores e seu retorno como espíritos que possuem apenas mulheres.

A vingança desses homens contra as desigualdades no mercado de trabalho também resvala em outra questão delicada na sociedade senegalesa: a desigualdade de gênero. Ada é obrigada por convenções sociais a se casar com um homem rico escolhido por sua família, uma tradição arcaica que prevalece nesse universo futurista e que determina o destino deles. Se isso afasta os dois amantes, também ajuda a entender o emprego do caráter sobrenatural da obra, com as mulheres sendo possuídas por espíritos masculinos em um tipo de processo sexualizado pela câmera de Diop. A luta de Ada nesse cenário é, antes de uma questão de amor, uma questão de empoderamento, identidade e resistência.

Quando longe dela, o filme se enfraquece numa subtrama investigativa que aposta no suspense mais tradicional e até mesmo a força visual da obra parece se diluir, como se uma segunda pessoa se apropriasse da direção nesses trechos. A simbiose entre o moderno e o antigo, entre o cosmopolita e o selvagem, o tradicional e o subversivo, vai se perdendo junto com todas as opções narrativas e estéticas diferenciadas que Diop adotou no início e que tanto ajudava a construir essa atmosfera orgânica de romance, suspense e estranheza.

O elemento central desse universo é o oceano atlântico. Se não visto o tempo todo, quase sempre se faz presente na trilha incidental de ondas e maresia trazendo junto de si um tipo de alívio ou tensão, a depender da situação. Ele embala o romance, como também traz a calmaria, como também engole o amor, como também cospe fora o horror, como também esconde o que não pode ser resolvido. Há tanto a se decifrar nessas águas, e tudo nelas parece muito cheio de mistérios. Não à toa chamou a atenção do mundo em Cannes e chegou à plataforma de streaming popular da Netflix. É uma pena que, nesse mar de possibilidades, a própria diretora pareça não saber como aproveitá-las até o fim.

Comentários (0)

Faça login para comentar.