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Críticas

Cineplayers

“O Reencontro” falado em francês.

5,0

Se é verdade que todo o grande filme começa por um grande plano de abertura, Até a Eternidade (Les petits mouchoirs, 2010) deveria estar entre os primeiros colocados. Num único take, a câmera segue um dos personagens, aparentemente alcoolizado e sob o efeito de drogas, de dentro para fora de um bar. À luz de uma Paris preguiçosa, que ainda reluta em sair das cobertas para enfrentar um novo dia, o homem sobe na sua moto e percorre as ruas ainda vazias da cidade. Os semáforos vão passando, verde, vermelho, verde... O homem prossegue seu caminho. Será tão difícil se recompor do choque do que se verá em seguida, boquiabertos com o impacto dramático e técnico da cena, que provavelmente alguns diálogos das sequências mais próximas serão perdidos. Contudo, quando a poeira começa a sentar e a narrativa avança, aquela força que se viu na abertura não se sustenta por muito tempo e a promessa de um grande filme logo se esvanece. 

Até a Eternidade – infeliz título nacional – aborda a vida de um grupo de pessoas, na faixa dos 40 anos, que, mesmo diante de um evento inesperado com Ludo (Jean Dujardin), um de seus mais carismáticos integrantes, parte para suas férias anuais na casa de praia de Max (François Cluzet), dono de um restaurante, e o mais bem sucedido deles. Da inseparável trupe participam ainda Marie (Marion Cotillard), que divide o tempo entre seu trabalho com tribos indígenas e conflitos amorosos mal resolvidos; Éric (Gilles Lellouche), ator de filmes que ninguém conhece e que tem o hábito de dar em cima de todas as mulheres ao seu redor, mesmo que isso coloque em risco seu atual relacionamento; Vincent (Benoit Magimel), que, mesmo sendo um heterossexual de carteirinha, sente uma forte atração física por Max; e Antoine (Laurent Lafitte), que não se cansa de pedir conselhos aos amigos sobre sua crise matrimonial com Juliette (Anne Marivin). Durante duas semanas, esses amigos farão o possível para se esquecer dos problemas rotineiros do cotidiano, divertindo-se entre passeios de barco, rodadas de pôquer, boa comida e muito vinho. No entanto, além dos pertences pessoais, todos eles levarão na bagagem as inseguranças e egoísmos naturais de cada um, o que contribuirá para que algumas verdades venham à tona. Se a resenha pareceu familiar, não estranhe. Até a Eternidade parece mesmo uma refilmagem de O Reencontro (The Big Chill, 1983), de Lawrence Kasdan.

No fundo, a partir da observação deste grupo de pessoas, Canet está falando de si mesmo. Nesse particular, o diretor parece ter uma visão bem realista e nada romântica em relação aos anseios da sua geração. Ao contrário dos seus predecessores que viveram os conturbados anos 60, os quarentões dos anos 2010 não estão lá muito interessados em lutar por algum ideal (se é que ele existe) ou chorar as pitangas pelos sonhos da adolescência não atingidos (tema que interessava mais a Kasdan). O tempos atuais são outros. Em vez das armas, do discurso político, da efervescência cultural e ideológica, a sociedade dos dias de hoje parece mais preocupada com a necessidade de fazer dinheiro e a busca pelo prazer a todo custo, nem que tais objetivos possam implicar no sofrimento de terceiros e na perda do contato humano. A insignificância dos problemas dos personagens parece conter um recado de Canet: o mundo tornou-se menos contestador e mais pragmático.

Esse aspecto autobiográfico, se de um lado contribui para tornar o projeto mais pessoal (e até intensificar o tom de camaradagem entre todos os integrantes do grupo), de outro traz alguns problemas. O primeiro deles está na supervalorização dos dramas vividos pelos personagens. É natural que, sendo uma obra tocada com o coração, Canet queira compartilhar com o público aquilo que lhe é mais caro. No entanto, faltou da sua parte uma dimensão mais correta da situação. Por mais benevolente que seja a platéia, nem todos vão querer acompanhar, por longas duas horas e meia, o curso de histórias que, no fundo, são absolutamente banais, corriqueiras, e que interessam essencialmente ao círculo de pessoas envolvido. Além disso, para quem deveria saber do que está falando, essa futilidade de conflitos a certa altura da narrativa passa a incomodar.

Pode-se argumentar que em nenhum momento passou pela cabeça de Canet fazer de Até a Eternidade uma radiografia da sua geração. Antes disso, sua proposta seria construir uma simples ode à amizade. Se essa foi a intenção, o diretor erra ao tornar seus personagens os seres mais cruéis do planeta, quando estes, mesmo abalados após o infortúnio ocorrido com de um seus amigos, optam por não adiar a viagem de férias. Não é fácil tolerar aquele grupo se divertindo em passeios juvenis e pueris, à luz do sol e à beira mar, em contraponto com o trágico evento que eles testemunharam dias antes de pegar as malas.

Por outro lado, o título original do filme (que metaforiza a palavra “lenços”), que é confirmado pelo nome que o filme recebeu nos EUA, parece indicar que a real intenção de Canet seria revelar as pequenas máscaras que carregamos no nosso dia a dia, as quais, se deixadas de lado, revelam nosso verdadeiro caráter, por vezes mesquinho, por vezes inseguro, mas, no fundo, sempre sedento de amor. Também por essa vertente, o diretor supervaloriza o material que tem em mãos. A rigor, não há uma grande revelação ou nada de sórdido guardado a sete chaves entre os integrantes do grupo. Todos sabem, por exemplo, que Marie já se relacionou com outras mulheres no passado. Antoine, por sua vez, não esconde de ninguém – pelo contrário – que quer reconquistar sua ex-mulher, atualmente perdida nos braços de outro homem. E também não é segredo pra ninguém que Eric é um galinha de marca maior. Mesmo a confessada admiração sexual de Vincent por Max não toma maiores proporções, já que ela acaba ganhando ao longo da narrativa um tratamento mais cômico do que dramático. 

Em suma, apesar de estarmos diante de um projeto extremamente pessoal, realizado mais com o coração do que com a técnica, Canet não sabe muito bem como passar seu recado, nem o que fazer com aqueles personagens. Nem sempre a proximidade do diretor com a obra ajuda o resultado final.
 
Em um filme sem uma trama propriamente dita, seria natural que sua força estivesse toda depositada no elenco, formado por nomes de ponta do cinema francês. Como não há um protagonista na história, nenhum dos atores se sobressai em relação aos demais. Cluzet, cada vez mais parecido com Dustin Hoffman, está bem como o neurótico do grupo, que desconta nos seus afilhados o incômodo que sente por ser o objeto de desejo de Vincent. Cotillard, num visual mais desglamourizado, também tem seus momentos, especialmente quando chora no ombro de Eric ao fazer uma confissão intima. No entanto, se esse equilíbrio de interpretações pode ser visto como um instrumento de reafirmação do espírito fraterno que existe entre os personagens, por outro lado a impressão que fica é de grandes talentos desperdiçados. E a culpa aqui é do roteiro, que, mesmo com mais de duas horas à sua disposição, não cria nenhum grande momento para os atores, seja um monólogo ou embate de ideias. O clima ameno, de bate-papo, deixa tudo meio morno, e o elenco também é prejudicado por isso.

Até a Eternidade é o terceiro longa-metragem de Canet. Astro do cinema francês, ele despertou a atenção atrás das câmeras logo no seu primeiro filme, Mon Idol (Idem, 2002), pelo qual foi indicado ao Cesar de melhor diretor estreante. Quatro anos depois, Canet deu a volta por cima e levou o prêmio para casa com Não Conte a Ninguém (Ne Le Dis à Personne, 2006), um thriller de suspense bastante influenciado em Hitchcock. Novos quatro anos de hiato e o diretor retorna agora com o projeto mais pessoal da sua carreira. Se demonstra um apuro técnico invejável (o incrível plano de abertura é a prova), Canet se perde em problemas tolos e, para quem já está no meio há algum tempo, quase indesculpáveis. Alguns deles são evidentes: a excessiva metragem (algo que já acontecia com seu filme anterior), a demora para entrar no tema principal (o diretor perde uns bons 30 minutos até que o grupo parta para a viagem de férias propriamente dita), a criação de subplots longos e desnecessários (as sequências de Eric e Antoine tentando reconquistar suas amadas poderiam ser inteiramente suprimidas ou ao menos encurtadas), e a inserção de clipes musicais que nada acrescentam à narrativa (a cena final, ao som de “My Way” é dose).

Alguns podem até achar que são contratempos menores, que deveriam ser relevados em função da paixão do diretor pelo projeto. De minha parte, vejo como entraves narrativos que prejudicam sim o resultado final. É possível até gostar de Até Eternidade e se envolver e torcer pelos dramas dos personagens. Contudo, pela ambição do projeto e pela proximidade do diretor com a história que ele queria contar, o filme tinha a obrigação de entregar algo a mais.

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