Em O Assassino em Mim (The Killer Inside Me, 2010), a pura maldade é personificada através de uma figura aparentemente inofensiva que, instalada sobre uma carcaça de trejeitos pacíficos e gentis, encobre um ser extremamente diabólico e destrutivo, sempre faminto pelo sofrimento dos seres de sua mesma espécie. É sobre as “feras internas” do ser humano que se trata o tão discutido filme que causou aversão e repulsa entre os Festivais Internacionais em que fora exibido; a transposição para as telas do famigerado romance escrito por Jim Thompson traz consigo uma sessão desconfortável para sua platéia, muito embora tal sensação seja fruto de um objetivo, já que notoriamente é isso que o cineasta Michael Winterbottom deseja emitir ao seu público.
Assim como aconteceu com Stanley Kubrick em seu Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) e mais recentemente com David Fincher em Clube da Luta (Fight Club, 1999), este filme carrega consigo a violência expositiva e psicológica como uma arma para promover em seu espectador uma reflexão, fazendo com que esse associe as imagens ali apresentadas com o cotidiano que vive. E, tal como as obras citadas, O Assassino em Mim provocou, em grau menos intenso – até mesmo por sua repercussão menor -, a repulsa por parte do público, talvez por aqueles que alegam que a temática abordada por tais filmes incentiva a violência real, especialmente entre a camada mais jovem e influenciável da sociedade contemporânea. Enganam-se estes, pois essas e outras obras cinematográficas estão aí não para estimular quem quer que seja a cometer tais brutalidades, mas sim para defrontar a sociedade com os monstros que a habitam silenciosamente, escancarando da maneira mais crua possível a maldade impune que paira sobre ela.
Ambientado em numa pacata cidadezinha texana, relata a delicada trama do jovem assistente policial Lou Ford (Cassey Affleck), que, durante uma missão dada para evacuar uma prostituta (Jessica Alba) daquela que é sua área de trabalho, acaba por se envolver com a moça, criando com ela uma estranha e doentia relação de sadomasoquismo. Entretanto, um grande magnata local descobre que seu filho também está de caso com aquela mulher e, a partir desse ponto, inicia-se um sangrento tornado de crimes e barbáries responsabilizados pelo aparentemente inocente Lou, que ainda não despertara o alerta ou suspeita de qualquer pessoa, até que um determinado promotor de justiça passa a desconfiar de sua índole e ficar em sua cola.
Por ser narrado em off pelo próprio criminoso, a obra estabelece com o espectador uma inquietante sensação de cumplicidade e, assim como ocorre em Laranja Mecânica, temos o psicopata discorrendo sobre sua própria vida, expondo-a sobre uma ótica crítica e por vezes irônica de tudo que lhe aconteceu e das figuras que já o cercaram. Desse modo, toda carga que a trama já possui passa a ser ainda maior, uma vez que diante dessa narrativa, nós, espectadores, estamos de certa forma um passo mais próximos da mente doentia do psicopata. A apresentação da loucura e cinismo de Lou Ford se encaixa com traços característicos encontrados em vários dos vilões mais icônicos do cinema, equiparando também com seus perfis a inteligência e o sadismo. Dessa maneira, o papel protagonista coube como uma luva na mão de Cassey Affleck, que lhe empresta um semblante ingênuo, superficialmente simpático para disfarçar um demônio que age sorrateiramente, escondendo-se sobre a farda de um bom e honesto homem da lei.
Dono de uma atmosfera sempre angustiante, O Assassino em Mim conta com a estrutura de um filme noir, assumindo alguns dos elementos mais primordiais presentes nesse gênero cinematográfico (arquétipos, femme fatale, corrupção...). É visível também a participação de outras substâncias temáticas que tornam a obra ainda mais atrativa, tais como a presença de um aguçado humor negro em alguns momentos, que naturalmente transporta-nos ao cinema dos Coen, mais precisamente ao recente Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country For Old Man, 2007), especialmente, também, pela ambientação estilo velho oeste de ambos (e não seria uma surpresa se o autor do livro em que fora baseada a obra dos Coen tivesse se inspirado no romance escrito em 1952, que deu origem a este filme em questão); ou até mesmo a obsessão sexual doentia, presente nas relações sadomasoquistas entre Lou e as mulheres de sua vida, algo que nos remete, nem que ligeiramente, aos devaneios sensuais de David Lynch em Veludo Azul (Blue Velvet, 1986).
É sempre excitante acompanhar uma obra que providencia um grande estudo de personagem, e isso acontece aqui. O Assassino em Mim analisa a mente de Ford - seu inferno particular -, que supre um prazer macabro em torturar e assassinar lentamente suas vítimas (não obstante disso que em certos casos ele faz de seus punhos uma arma, como um método para que a dor e o sofrimento de sua vítima sejam sentidos com maior intensidade), sem que com isso esboce sequer uma expressão de remorso, arrependimento. Essa personalidade monstruosa vem como reflexo de um passado traumático, nunca apresentado totalmente, que funciona como uma possível “explicação” para o comportamento anormal do protagonista. Lou tem como armadura para realizar seus crimes a confiança e o respeito que os moradores depositam nele enquanto policial, e nesse ponto não deixa de ser notória a ironia, pois a maior ameaça que os cidadãos daquele local devem temer é justamente aquela pessoa que deveria lhes garantir segurança e proteção.
Michael Winterbottom, muito embora, falha em não conseguir sustentar o interesse constante da narrativa, fazendo com que as oscilações freqüentes em seu ritmo prejudiquem o desenvolvimento. Ainda sim, o choque psicológico conferido pelo filme mantém-se intacto durante e após sua sessão, garantindo ao espectador uma inevitável sensação de desconforto, acompanhado da desagradável reflexão a respeito da presença contante do mal em nosso meio e dos resultados danosos provocados pelas ações de seres como Lou Ford - efeitos esses que mancham de sangue o convívio entre os habitantes de um lugar em comum, promovendo uma trajetória infinita de caos e violência, seja aqui mesmo em nosso país, seja numa cidadezinha qualquer no Texas.
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