Assassino a Preço Fixo é mais um filme de ação genérico e apático que possui a desvantagem de estar deslocado no tempo, longe de uma realidade onde poderia vir a ser útil de alguma forma. Dirigido por Simon West (do divertido Con Air – A Rota da Fuga [Con Air, 1997] e dos ridículos A Filha do General [The General’s Daughter, 1999] e Lara Croft: Tomb Raider [idem, 2001]), é um remake do homônimo de 1972 (com Charles Bronson). Não segue nem a linha da ação mais sofisticada nem a mais picareta, passando longe (por seu gênero e por sua referência no filme original) de suprir a necessidade por um artigo do qual muitos dão falta ultimamente: a ação brutamontes à moda antiga.
Os “filmes de macho” formam uma espécie de subgênero clandestino dentro do próprio reduto da ação no cinema americano. Inaugurados por John Wayne, possuem a interessante virtude de rebaixar a figura do próprio diretor na composição de sua identidade. É lógico que a influência de um John Ford, Don Siegel ou Richard Donner é a mesma de qualquer diretor em qualquer filme, mas não é disto que o público se lembra ao ver prateleiras de locadora organizadas em etiquetas com “Charles Bronson”, “Dolph Lundgren” e “Jean-Claude Van Damme”. É o fenômeno da composição do icônico (comum na definição dos gêneros e suas derivações) voltada diretamente à figura do protagonista, sempre gravitacional em cena, sempre interpretando a mesma persona, definindo, se não o que o filme efetivamente é, boa parte do que ele representa para seu espectador.
Este personagem, descendente de uma linhagem que já foi capitaneada por Wayne, Eastwood e James Stewart, está morto. Depois de passar por seu mais prolífico estágio nos anos 80, o “gênero” não se desenvolveu verticalmente, sendo substituído por uma derivação composta de filmes que, por ironia, vêm buscar no passado e em outras mídias sua matéria-prima (Batman, Bourne, Homem-Aranha). O herói vem fundado na literatura e na HQ, não mais como uma criação espontânea do próprio cinema, então autônomo e senhor de si. Saem Schwarzenegger e Chuck Norris, entram Tom Cruise e Matt Damon. A ação fica refinada, inteligente, elaborada, e a figura do kick-ass son of a bitch, símbolo do absurdo cinematográfico, das balas intermináveis e dos músculos à prova de chamas, esvazia-se completamente.
Jason Statham não é um mero remanescente dessa safra de heróis oitentistas (como Steven Seagal, mais ativo do que nunca), mas um vislumbre do que a ação descerebrada movida a chumbo e kung-fu seria em um contexto de anos 2000. Menos com Guy Ritchie e a série Carga Explosiva (The Transporter, 2002) e mais com Adrenalina (Crank, 2006), um filme que não nasceu de uma iniciativa consciente de referenciação como Machete (idem, 2010) ou Os Mercenários (The Expendables, 2010), mas que só se permite ao exagero (e à completa loucura em sua sequência) porque possui todo um rol em seu alicerce; ação executada uma oitava acima.
Se o western era um pretenso recorte histórico colorido pela óptica romântica sobre a figura do cowboy, e se a violência urbana dos anos 70 (de Perseguidor Implacável [Dirty Harry, 1971] ao blaxploitation) era um retrato da realidade sobreposto ainda por uma lógica narrativa totalmente fundada no mesmo faroeste que a precedeu, a década seguinte vem para desafiar as noções do que é plausível ou não, estabelecidas e já levemente vergadas por seus antecessores. Adrenalina age da mesma forma nos novos parâmetros de diegese firmados pela ação oitentista, desmontando as bases que ela havia construído sobre as ruínas da ação dos anos 70, erguida por sua vez sobre os restos mortais do velho oeste clássico.
A evolução, como vemos, é orgânica. Faz sentido como desenvolvimento natural de um gênero ou movimento ou linha no cinema: cada vez mais irreal, mais ficto. É por isto que a situação atual é triste: falta um pedaço de um código genético que, mesmo tendo se vulgarizado nos anos 80 (e uso o verbo desprovido de seu sentido original, porque não coloco esta ação abaixo daquela ou vice-versa), descende diretamente de um grupo de filmes que já teve Anthony Mann e Howard Hawks como diretores.
Assassino a Preço Fixo pode parecer o mais inútil dos filmes, tão inútil que não vale uma crítica a seu respeito (como você deve ter notado), mas representa muito dessa falta de progressão da ação bagaceira no cinema americano. Seja por meio do matiz absurdo e estridente de Adrenalina ou do 100% gamístico de O Justiceiro (The Punisher, 2004), por uma questão de respeito com sua história, ela clama por continuidade.
É meio macabro pensar no coração da violência incrustada na cultura americana com sua gênese situada exatamente no western (um gênero sem o qual TUDO teria sido diferente) e lembrar sua relação imanente com a morte. Ainda que seu fim gere suspiros até hoje, os órfãos do gênero tiveram Dirty Harry, Braddock, Magnum e Mad Max — o mesmo códice e o mesmo espírito da porradaria faroeste sob outros tons e outros trajes, heróis genuínos que não apenas habitam, mas que nasceram no cinema. A minha geração, dos anos 90 para cá, teve Vin Diesel e os irmãos Wayans, Frodo e Harry Potter.
Por mais repetitivo que soe a quem acompanha o Cineplayers, não vou me cansar de citar Gran Torino (idem, 2008), onde Eastwood realiza um funeral apropriado para um tipo de protagonista que parece (por isto acho macabra esta lógica circular do cinema envolvendo o western) ter perdido seu lugar no mundo e na concorrência pela atenção do espectador. Eastwood é Eastwood, o homem “de duas expressões: com chapéu e sem chapéu”, o cara do “make my day”, que atira e depois pergunta.
É o fim do herói impossível, cinematográfico (com toda a amplitude que este termo carrega). Como Bronson, Van Damme, Lundgren, Stallone, Wayne, Cooper e, ao que parece, Statham, o cara que as novas audiências abateram, desarmado e sozinho, numa calçada imunda do subúrbio.
4,0
Nunca pensei que uma crítica a um filme razoável pudesse ser tão intetessante e divertida. Geralmente, quase sempre, discordo das suas notas, mas seus textos são muito bons. Parabéns.