Thriller bastante funcional dentro de suas inversões e provocações.
Numa de suas poucas entrevistas ao passar pelo Brasil para a divulgação de Armadilha (Trap, 2024), Shyamalan afirmou como retraía sua veia cômica no ínicio da carreira, com medo de que os produtores ou até mesmo o público não recebesse tão bem essa intervenção tão disruptiva dentro de filmes inicialmente concebidos como suspenses. Com seu nome já consolidado no imaginário popular, é bem possível afirmar que A Dama na Água (Lady in the Water, 2006) e Fim dos Tempos (Happening, The, 2008) se apresentaram como os primeiros ensaios de Shyamalan no uso do humor com fins de potencialização dramática do absurdo - e todos nós sabemos o que esses filmes fizeram com a carreira do indiano naquele momento.
Daí tão interessante olhar não somente o presente do cineasta pós A Visita (Visit, The, 2015), seu primeiro filme de humor assumido, mas também as viradas de chave de seu passado enquanto autor que saiu de um dos momentos mais explosivos e populares de um objeto da cultura pop (“- I see dead people”) para um realizador se que fidelizou às suas próprias concessões, abrindo mão da lógica pré-estabelecida das narrativas comerciais e mantendo a confiança nas suas próprias decisões artísticas, por mais questionáveis que elas pudessem ser: em Vidro (Glass, 2019), tivemos um filme de super-heróis que renegava a própria grandiosidade imagética desses seres fantásticos para questionar sua própria existência no mundo (e ambientar a trama num manicômio com o clímax acontecendo no estacionamento desse espaço foi a melhor das provocações).
Tempo (Old, 2021) trouxe personagens que teorizavam obsessivamente sobre a situação fantástica em que se encontravam (referência direta a Fim dos Tempos) enquanto resvalavam em deduções cada vez mais absurdas. Batem à Porta (Knock at the Cabin, 2023) reservou pra si a liberdade de abrir mão de muitos dos códigos narrativos exercidos por Shyamalan até então: o filme começava e seguia com sua trama até a resolução sem maiores rodeios, sem interferências de desdobramentos maiores. Ora, você é Shyamalan, como ousa fazer um filme sem nenhuma surpresa? O que se entende a partir daí é que Shyamalan tem lidado cada vez menos com as expectativas de um público que há quase 30 anos anseia por um novo O Sexto Sentido (Sixth Sense, The, 1999) enquanto prefere ocupar-sem mais com exercícios de estilo e de gênero sem abrir mão de uma única coisa: o embate entre o metafísico e o racional ao qual seus personagens são submetidos.
À primeira vista, Armadilha não é tão óbvio a essa fidelidade temática especialmente pela simplicidade quase banal de sua história, ambientado num show de uma cantora pop que, na verdade, é uma armadilha para capturar o Açougueiro, serial killer interpretado por Josh Harnett e que está no concerto com sua filha, Riley (Ariel Donoghue). Armadilha já nasce numa provocação anterior ao massivo material promocional do filme: o roteiro revela em seus 10 primeiros minutos que Harnett é o serial killer em questão, e o que sobra para o filme então? Claro, acompanhar suas tentativas de sair daquele local sem ser reconhecido ou apanhado, numa curiosa subversão dos thrillers policiais dos anos 80 e 90, onde pouco se sabia sobre a figura ameaçadora e muito sobre quem a caçava.
Essa estratégia, é claro, igualmente provocou o público, que se questionou sobre o que Shyamalan teria para mostrar já que a identidade do assassino não seria nenhuma surpresa? Nesse ponto, Armadilha empresta para si o próprio senso de provocação de Shyamalan como força narrativa, elaborando as mais diversas situações, obstáculos e dificuldades que Cooper ultrapassa com a mais incrível destreza e sagacidade, algo que para grande parte do público irá soar como conveniências por parte do roteiro para o filme acontecer de alguma forma - e talvez seja mesmo, Shyamalan parece bem descarado e assumido nesse ponto. E tais escolhas poderiam levar a experiência por água abaixo (não há como negar que, em certo ponto, as conveniências extrapolam o bom senso, sim) se elas não viessem acompanhadas de um domínio dos mais objetivos por parte do cineasta em estudar os espaços e desenvolver uma dinâmica do olhar, valorizando a própria posição do espectador de estar sob o mesmo ponto de vista do assassino.
O indiano brinca com todas as suas formas dentro da dinâmica do distanciamento (Cooper observando as ações da polícia no estádio) e aproximação (Cooper se infiltrando na cara dura nos espaços de acesso restritos), dobrando a aposta das convencionalidades em favor da subjetividade de Cooper, que precisa escapar dali sem deixar sua filha para trás. Lembrando de quando apontavam Shyamalan como “o novo Hitchcock”? Aqui essa alcunha parece justificada, de alguma forma. Com seus truques estabelecidos, Armadilha vai operando na base da provocação das expectativas do próprio público, já que materializar a ação é o que existe de primordial, o exercício da perspectiva só acontece quando Cooper ultrapassa mais um obstáculo, quando empurra uma pessoa escada abaixo, quando consegue informações com extrema facilidade por transparecer sua confiabilidade.
Shyamalan não faz concessões, e essa talvez seja a primeira das frustrações que o público terá com a experiência em questão. Lembra até uma comédia screwball de tanto que os acontecimentos vão escalando em seu próprio absurdo, e Shyamalan se utiliza do já mencionado humor como potencializador do próprio exercício narrativo. Se há algum “twist” em Armadilha, ele está muito mais presente no abandono, sem muitas cerimônias, do ambiente do espetáculo pop para um isolamento dentro do próprio subúrbio americano que irá centralizar algumas figuras coadjuvantes como decisivas para a narrativa caminhar - e aqui falo especialmente de Saleka, filha do cineasta que interpreta a cantora pop Lady Raven. Em seu primeiro crédito como atriz, a cantora cambaleia para segurar as pontas da influência de sua personagem na reta final, quando o filme igualmente abandona seu exercício de subjetividade para potencializar outros elementos presentes desde o início, como a presença da tecnologia e até alguma investigação sobre o passado de Cooper e o que lhe fez se tornar aquilo - num subplot familiar dos mais dispensáveis e que resvala no vício costumeiro de Shyamalan em ser prolixo quando não deveria. Ao mesmo tempo em que esse clímax justifica sua existência pelas possibilidades de extensão da comédia de absurdos que vinha se desenhando até então, o cineasta esquece a hora de parar e se deslumbra com as próprias armadilhas do roteiro pelas quais ele mesmo sucumbe, apesar das reações de Cooper após sua identidade ser descoberta segurar boa parte do interesse por essa reta final.
No fim das contas, a fidelidade de Shyamalan ao que lhe torna um autor segue entre as mais admiráveis dos realizadores contemporâneos, para o bem e para o mal. Poucos abraçam a caricatura, o fanfarronismo e a transcendência pelo absurdo como ele, levando até o limite da auto-consciência, às vezes pelo puro prazer da encenação, às vezes pelo puro desejo da experimentação, e Armadilha reúne o que há de melhor e pior dentro das características do cineasta: a encenação rigorosa do olhar subjetivo à favor do aprimoramento do humor como chave dramática. Fica a certeza de que a imagem de Shyamalan não irá mudar, ao menos não agora. Quem o adora, vai encontrar aqui um deleite. Quem o odeia, ainda terá todos os motivos para reclamar. E com isso, seguimos o show.
“o novo Hitchcock" é forçar muito