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Críticas

Cineplayers

Um dos mais importantes e deliciosos filmes deste final de década.

9,0

Aquele Querido Mês de Agosto foi um dos mais analisados e discutidos filmes lançados no Brasil em 2009 (infelizmente não se pode dizer também ter sido um dos mais assistidos já que seu público é formado restritamente por críticos e cinéfilos mais ardorosos, chegando muito pouco ao resto do planeta) e, por uma razão em especial, este reconhecimento é justo e necessário. Considerando a imagem como o principal órgão do corpo cinematográfico, o que Miguel Gomes propõe e executa com precisão neste “meta-documentário de ficção” é a reconfiguração da própria imagem, que através da fusão entre a verdade e a mentira nela inseridas se restringe a um único conceito: a imagem de cinema. 

Por mais que não exista qualquer zorra em meio ao parque-de-diversões cinematográfico de Miguel, estando tudo devidamente situado em seu espaço/tempo, o diretor concede ao seu filme o direito de absorver as convenções (documentário, ficcão, metalinguagem, etc) às quais estamos naturalmente ligados para dar vasão a um fluxo de imagens que chegam a nós em um mesmo patamar de significância: elas estão ali, vivas, sendo projetadas em torno do discurso de um filme e, especialmente, para dar forma e sustentação a ele, e isto independe de quais sejam suas origens ou do quanto de verdade está embutida nelas: é, simplesmente, o Cinema, e tudo o que existe nelas adquire vida dentro deste filme. 

Mais interessante ainda é acompanhar o destino que o diretor dá a cada uma dessas imagens e dos personagens da primeira parte de seu filme, que basicamente trata (é um pequeno spoiler, mas enfim, qualquer comentário sobre esse filme, nem que seja de uma linha, irá antecipar alguma coisa importante sobre ele) da pesquisa (encenada) realizada em uma vila de Portugal para a realização de um filme de ficção, que é integralmente o material da segunda parte. As deliciosas soluções e conexões que o diretor encontra entre ambas as partes, desde pequenas referências temáticas a detalhes que remetem ao surgimento de um personagem interpretado pelo mesmo ator da parte anterior, comprovam o cuidado de Miguel Gomes na concepção deste universo e seu gosto pelas pequenitudes da vida. 

E é este o segundo grande mérito de Aquele Querido Mês de Agosto: o apreço pelo mundano, pelas coisas banais que nos cercam e que, por serem tão esnobadas durante o dia-a-dia e valorizadas de um jeito tão apaixonado pelo cinema de Gomes, são amplificadas em tela de uma maneira impossível de ser definida ou medida ou simplesmente registrada em palavras. O efeito gerado é precisamente oposto ao de filmes como Almoço em Agosto, exemplo que apesar de todas as enormes diferenças compartilha com este muitos objetivos: ao manipular e dirigir seu filme, ao invés de tentar impor a ele ritmo e desleixo pretensiosamente naturalistas, Gomes aproxima-se muito mais da realidade e consegue fazer de imagens como um caminhão de bombeiros percorrendo uma estrada ao som de uma canção regionalista ou de crianças brincando na água uma fonte inesgotável de memórias a respeito desta vida em comunidades – a qual afinal todos possuem e da qual todos guardam eternas lembranças. 

Desta forma, Miguel Gomes faz ficção de um jeito que soa documental e do documentário uma própria ficção, diluíndo a barreira entre ambos e fortificando este conceito único (que na realidade sempre existiu, apenas aqui é levado às últimas conseqüências) de imagem, que só pode pertencer mesmo a um filme. De quebra, ainda permite ao seu filme diversas outras leituras, como por exemplo ser um dos mais deliciosos registros do prazer do cinema feitos na atualidade e uma grande homenagem ao arduroso trabalho de se fazer um filme, sem apelar para atualizações/plágios de A Noite Americana como normalmente fazem os autores de menor imaginação. Trabalho que deixa enormes expectativas para o que este realizador português poderá fazer futuramente.

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