8,5
As luzes se ascendem revelando os cômodos de uma casa cenográfica semi montada num palco de teatro logo na abertura de O Apartamento (Forushande/The Salesman, 2016). No plano seguinte, vemos um edifício real sendo demolido enquanto os moradores desesperados evacuam a área. Mais à frente, o casal Emir e Rana tenta superar um terrível trauma vivido pela esposa, enquanto à noite encenam um drama familiar clássico em A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. Durante toda a projeção de seu novo trabalho, Asghar Farhadi firma um paralelo cada vez mais coincidente e próximo entre arte e vida, estreita pouco a pouco um laço entre a peça e o filme, até chegar num ponto de ruptura em que um lado se espelha diretamente no outro.
Emad e Rana acabam de ser obrigados a deixar o edifício em que moram, que ameaça desabar por problemas na estrutura e precisa ser demolido, e vão morar temporariamente no apartamento vago de um conhecido. A antiga moradora do local deixou alguns pertences pessoais trancados em um cômodo, o que incomoda Rana, que em vão reivindica o espaço. Mais tarde, por conta de um descuido, o apartamento é invadido e Rana é atacada e acaba indo parar no hospital. Sem entender a razão da agressão ou a identidade do invasor, Emad parte para uma investigação própria em busca de vingança.
Como sempre no cinema de Farhadi, uma situação cotidiana inicial se desenrola numa sucessão de desdobramentos inimagináveis. Para isso, o diretor habilmente deixa muitas sugestões e insinuações no ar, nunca confirmando todas as informações que surgem. Interessado em discutir os ruídos na comunicação no âmbito familiar moderno, Farhadi brinca com o espectador, soltando informações no seu devido tempo para transformar a narrativa e rumar com sua história para direções imprevisíveis. Por exemplo, nunca fica claro que tipo de agressão Rana sofreu no apartamento, se apenas apanhou ou se foi também violentada sexualmente. A violência sofrida por ela, independente de qual tenha sido, cria uma ruptura na sintonia entre o casal, que passa a não conseguir se entender ou se comunicar devidamente. Emad só quer saber de vingança, Rana só quer esquecer e se mudar daquele lugar. Ambos atores, à noite se transformam para encenar A Morte do Caixeiro Viajante, onde também são um casal em crise, e logo o filme começa a buscar respostas e sugestões nos diálogos travados entre Emad e Rana durante a peça, já que fora dos palcos os dois parecem não falar mais a mesma língua.
O interesse narrativo de Farhadi está sempre no vago, no ausente, no silêncio, pois é essa falta de informações que fomenta toda a trama, de modo que sua câmera aqui é muito empregada em espaços mortos, ambientes vazios, nunca chegando de fato a alcançar os momentos-chave reveladores. Por exemplo, no simples plano em que a imagem fica estática e muda fitando a porta do apartamento que Rana deixa entreaberta, acreditando que Emad está subindo as escadas para entrar, um terror inominável toma conta do ambiente, como uma ameaça invisível e ainda impalpável de que algo de muito ruim está para acontecer com ela. Dentro dessa lógica, o diretor explora as dores silenciosas que minam os relacionamentos modernos, ao mesmo tempo em que traça um retrato sobre a figura feminina, sempre mais madura, consciente e prática que a masculina (como vemos em A Separação [Jodaeiye Nader az Simin, 2011] e O Passado [Le Passé, 2013]). A configuração dos espaços também contribui para um clima de ruptura iminente, seja na condição física do edifício que ameaça desabar, seja na raiva cada vez mais evidente que Emad procura esconder, seja na fragilidade física e emocional implodindo na postura e atitude de Rana.
Na peça A Morte do Caixeiro Viajante, Arthur Millher retratou a degradação gradual de um homem quando em busca do sonho americano, sacrificando sua família, que a princípio de tudo era o motivo pelo qual ele procurou mudar de vida. O ímpeto machista do patriarcado o leva a assumir um papel que desestabiliza seu casamento, e da mesma forma Farhadi usa dessa base para discutir sobre os papéis de homem e mulher no casamento e na sociedade ao colocar Emad sedento por vingança, mais por uma questão de honra maculada de sua condição como homem, marido e pai de família, enquanto Rana, a maior vítima da história, só procura se reestruturar emocionalmente para seguir em frente. Muitos outros personagens ainda surgirão nessa equação e oferecerão outras perspectivas sobre o conflito central, mas a mensagem de Farhadi é tão clara quanto certo trecho do próprio texto original de Miller:
“Sometimes it’s better for a man just walk away
But if you can’t walk away?
I guess that’s when it’s tough”.
Visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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