8,0
No mundo habitado por Michael Stone, tudo parece monocromático, sem sal, povoado por pessoas iguais, vozes iguais, e movido por uma rotina apática. Dentro desse contexto, o próprio Michael não tem como fugir à regra e se mostra um homem ensimesmado e isolado dentro de seu ego, não fazendo questão nenhuma de contato social. Ele sofre da síndrome de Fregoli, um transtorno psicológico raro que provoca a sensação de estar rodeado de pessoas conhecidas se revezando em diversos papéis cotidianos. Se alcançarmos alguma distância de Anomalisa (idem, 2015), é possível notar que Michael Stone nada mais é do que uma variante do personagem central de todos os filmes escritos e/ou dirigidos por Charlie Kaufman: um estranho que não se encaixa nem mesmo em seu próprio universo particular.
Já em Sinédoque, Nova York (Synedoche, New York, 2008) notamos um alter-ego tão afundado em suas próprias questões e incoerências que tudo ao redor é sugado pelo próprio eixo até chegar ao abstracionismo total de seu subconsciente, um local de difícil acesso até mesmo para o público, que cedo ou tarde fica para trás e se limita a apenas acompanhar o nonsense. Em Anomalisa, a diferença está principalmente em situar toda a crise no stop-motion, o que só reforça sua estranheza ao bater de frente com a lógica comum dos imediatismos do gênero. Kaufman novamente subverte a linguagem cinematográfica e desafia o senso comum ao trazer uma animação que, de certa forma, trai as características mais marcantes do gênero, a começar pelo público-alvo. Ao contrário do que possa parecer, ele não opta pela animação apenas como uma forma de contradição, mas também porque só através dos subterfúgios dela que se torna possível atingir o ápice de Anomalisa, realçando a plasticidade e artificialismo das relações do mundo moderno. Os tempos mortos, a fantástica cena de sexo, o trabalho vocal exigido do elenco – tudo vira um ponto a favor por se tratar de um desenho, brincando com caricaturas e por meio desse caminho alcançando um ponto nobre com sua história, acima de tudo, adulta.
Lisa Hesselman personifica o papel da mulher inatingível de sempre nos filmes de Kaufman, que mesmo quando muito próxima do protagonista, continua uma ilha de mistério, o que só reforça a inabilidade nata de Michael em lidar com qualquer pessoa que seja, não somente por timidez ou fobia social, mas principalmente por sequer saber lidar e esclarecer suas próprias limitações. O título que faz menção ao nome dela junto com a ideia de anomalia indica uma personagem também fora de sintonia e maravilhosamente diferente do comum (sendo a única, além do próprio Michael, a não ser dublada por Tom Noonan).
Por meio de Lisa e Michael, o diretor novamente lança o holofote sobre os tipos inadequados e errantes, e ainda aborda temas difíceis como a depressão. Sua lógica corre na contramão das histórias mais tradicionais, por valorizar o grotesco, o estranho e o diferente, e pasteurizar o belo, agradável e desejável no senso comum. Ao mesmo tempo contrapõe antagonismos, saturando alegria e a tristeza, tragédia e comédia, ternura e brutalidade. Através da simplicidade do argumento e do formato, Kaufman na verdade descomplica o que sempre o atormentou em seus complexos trabalhos anteriores e coloca em evidência o que, afinal de contas, sempre quis mostrar: a dificuldade e a beleza de ser diferente em um mundo cada vez mais sem sal e sem cor.
Belo texto, Heitor 😁
Deu até vontade de ver..Parabéns!! :D
Obrigado 😉
Vi esta semana e é talvez o melhor filme do ano, pena não ter visto antes.
SPOILERS
Então a interpretação mais plausível é que Lisa era a boneca japonesa e a sua relação sexual foi com essa boneca, a interpretação da mulher ideal para Michael.