Heitor Dhalia enfrentava uma entressafra já alongada em duração. Ainda que nunca tivesse conseguido superar sua estreia em Nina, um diretor autoral e com liberdade de circulação entre zonas mais industriais da indústria é sempre necessário para o fortalecimento da cinematografia, e ele exercia esse papel com resultados acima da média. Mas em determinado momento observar a carreira de Dhalia vinha sendo o mesmo que observar uma escadaria, de cima pra baixo. Longe dos tempos da estreia e de O Cheiro do Ralo ano passado Dhalia entregou a adaptação de HQ Tungstênio, que mais uma vez mostrava um realizador estagnado em suas próprias ideias, enclausurado nas tentativas de resolver as escolhas da carreira. Pois 15 anos depois de seu primeiro filme e prestes a completar 50 anos, Anna é um impacto.
Diferente de tudo que já havia tentado, esse seu roteiro assinado junto com Nara Chaib Mendes se arvora por uma seara muito complexa no cinema, que são os bastidores teatrais, sem trazer o teatro pra dentro da tela — a proposta é mais próxima do A Pele de Vênus de Roman Polanski, e não uma adaptação do texto-chave, no caso Hamlet, que se transforma em uma vestimenta do longa e que é constantemente despido. Ao ambicionar um olhar sobre as intensas e quase sempre tóxicas relações de poder que irrompem da arte, Dhalia não deixa de evocar o clássico de Shakespeare e empilha uma série de bem sucedidas intenções para tratar de diversos assuntos, que vão do próprio universo teatral, ao assédio moral tristemente intrínseco ao universo, a troca das relações de dominação, ao abuso sexual pelo qual gerações de mulheres já se viu envolvida, tudo isso em roupagem que trafega entre o naturalismo e o artifício com muita propriedade.
Então a base teatral construída para o longa se alicerça até em caráter esperado, o eterno confronto entre criador e criaturas e síndromes de pequeno (pequeno?) poder que se intercalam gradativamente, mas tem muita veracidade no clima imposto desde o princípio ali. Além de promover um olhar para o aspecto macro que vai afunilando até se transformar num jogo simbiótico de mutilação emocional, Anna impõe às suas armas uma espécie de regra geral de "temas do momento" uma qualidade do verossímil, ao conectar o que é certo e o que é possível, dentro dos desenhos de cada personagem e ações. Então a atriz só teria como ir até ali, o diretor teria como avançar mais, tudo dentro do contexto apresentado de construção dramática de cada um.
Absorvendo as referências do palco mas transpondo as mesmas em caráter cinematográfico, Dhalia e seu fotógrafo Azul Serra tem um projeto imagético para o filme que nunca encarcera o espaço teatral dentro do que ele se convenciona exibir. Em esquema de crescente tensão e claustrofobia, toda a luz do longa é concebida para ampliar o espaço cênico, para a partir de então oprimir suas personagens, mais especificamente a titular de sua história, vivida pela jovem Bela Leindecker, que se transforma numa anti-Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo, ao mesmo tempo em que consegue conjugar juventude, doçura, medo e força ímpar, tornando-se o ponto de referência do filme em uma entrega avassaladora, sozinha ou estabelecendo uma parceria arrepiante com Boy Olmi.
Anna também se constitui um exercício fascinante de quebra de quarta parede não intencional. Ao propor filmar a história de uma relação doentia entre um autor e sua estrela, Dhalia reflete também a si, um autor, dirigindo Bela, sua estrela. Mais do que a si próprio, Dhalia tem coragem de inquerir todas as relações destrutivas entre criadores e seus modelos, das viciadas relações de poder trabalhistas, com os ardis criados para entoxicar ainda mais essas mesmas relações, e do lugar onde se subjuga mulheres na sociedade atual. Um campo amplo de interpretações que gerará debates morais incômodos, mas que impressiona cinematograficamente com o talento revigorado de seu diretor.
Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo
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