Imaginar um contexto nacional onde "A Volta do Parafuso" de Henry James coubesse à nossa cultura, ao estado das coisas nos anos 1970 em plena ditadura, talvez fosse um exercício de imaginação ainda mais fantasioso do que o próprio autor britânico concebeu ao desenvolver sua obra, em 1898. Entretanto, talvez metaforizar fosse a única coisa possível a ser feita em tempos de censura e da perseguição à classe artística pelo governo, tempo esse bem longe dos atuais... né?
Walter Hugo Khouri, um dos nossos mais brilhantes cineastas de todos os tempos e também um dos mais subestimados, livremente observou o material de mais de 70 anos à ocasião e desenvolveu uma versão particular, sem credenciar e observando focos de discussão muito particulares ao país, às relações de classe e raciais. Assim, o cineasta entrega um longa que, embora embebido no gênero, também comenta um Brasil que infelizmente não retrocedeu na forma como relega quem o formou.
Se o filme se desenvolve, aos moldes de outras adaptações (assumidas ou não), com o mesmo plot da interação entre a figura estrangeira e as crianças que psicologicamente quebrarão o jogo cênico a princípio proposto, o comentário social que vai sendo alicerçado em paralelo altera por completo as ideias que conhecemos para o campo narrativo, desenvolvendo assim suas questões particulares que realçam o quadro geral, levando-o de sua moldura original para um desenvolvimento que pincela o passado do país.
A personagem de Selma Egrei, com uma curiosidade típica da burguesia a qual pertence, conhece o caseiro vivido por Eliezer Gomes e não desenvolve teorias a seu respeito ou mesmo se deixa fascinar a primeira vista, ou seja, o personagem carrega uma imagem positivada, que se esvai assim que as estranhezas relacionadas a ligações misteriosas começam a ganhar constância, e o personagem começa a representar traços de ambiguidade.
Do momento onde Augusto "brinca" com o pequeno Marcelo (o alterego de Khouri já demonstra suas características marcantes na tenra idade), Ana se move do lugar confortável onde estava para então colocar-se no tradicional lugar da mulher 'desconstruída até a página 5', e o filme começa a liberar sua potência discursiva para reinterpretar padrões de comportamento, tanto da classe dominante quanto das dominadas, obviamente polemizando... afinal, é um Khouri.
O filme não foge do risco e problematiza não apenas o alto da pirâmide como também a base, o que pode hoje provocar um olhar de desprezo. Porém, ao colocar todos os lados sob o escaninho da desconfiança, o cineasta entrelaça os códigos de gênero aos padrões de manutenção do racismo e do machismo, não deixando nenhuma ferida sem ser devidamente cutucada, e provocando novas camadas de possibilidades inflamatórias ao longo de sua curta duração.
Dentro do universo de gênero que o filme apresenta dentro da filmografia do diretor, é interessante ver surgir esse seu alterego em versão infanto-juvenil. Marcelo é um homem constante nos filmes de Khouri, e aqui sua versão apresentada não teria como apresentar as características melancólicas que ele irá apresentar no futuro, mas o poder de sedução já demonstrado, sua relação conflituosa com a protagonista, seus jogos de manipulação, já são visíveis aqui e encontram um fascinante universo à parte toda a narrativa particular.
Ainda com um título a mais que o colocaria de frente ao terror ainda mais abertamente — As Filhas do Fogo (1978) —, o que Walter Hugo Khouri aqui propõe é, como todo elevado exemplar do gênero, um desdobramento que discuta também a sociedade ao redor dos códigos que apresenta. Dissecando uma narrativa clássica ao ponto da subversão, O Anjo da Noite intriga e provoca o estranhamento necessário para que se mesclem as características tradicionais do terror e uma reflexão social que, 46 anos depois, soa ainda assustadoramente atual.
Crítica pertencente ao especial Abrasileiramento apropriador do Halloween
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