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Críticas

Cineplayers

A densidade extraída do exagero.

8,0

Furiosamente atacado pela imprensa brasileira na sua passagem pelos festivais e mostras do fim do ano, Amores Imaginários, do jovem (21 anos) cineasta canadense Xavier Dolan, é mesmo fácil de se criticar: tem um fiapo de história que mal se agüenta; o diretor parecia mais preocupado em usar filtros e lentes do que dar dinâmica ao filme; o excesso de referências cinematográficas é tanto que o resultado final parece cópia de filmes asiáticos cults ou uma refilmagem para lá de afetada e superficial de Os Sonhadores (The Dreamers, 2003), de Bernardo Bertolucci.

O filme é tudo isso e não faltarão esses e outros tantos argumentos negativos para se detonar a obra. Exemplos: o estranho francês falado no filme, com forte sotaque canadense, o chamado québécois (o filme passou na França praticamente metade dele legendado), ou mesmo a bichice explícita que, pelo visto, é incômoda para muitos.

No entanto, para quem gosta de filmes super-estilizados (diria até hiper-estilizados), adora músicas cafonas dos anos 60 (no caso, a irresistível Bang Bang, na versão italiana de Dalida), roupas chiques saídas de brechós caros e uma saravaida de citações do cinema relativamente fáceis de seguir (o que dá uma certa sensação de intimidade com o filme), sem dúvida Amores Imaginários é a pedida. Afinal, quem disse que filme precisa ter história e seguir um roteiro? No caso de Xavier, o que há são alguns poucos diálogos irônicos, fumaça, câmeras lentas à la Wong Kar-Wai, barbas e pescoços masculinos a granel, além de, claro, muita viadagem.

Pouco diretores, em geral só os grandes cineastas, conseguem usar a estilização a seu favor. Veja o caso de Tim Burton. Por mais aberrante e exagerada que seja sua Gotham City da série Batman (os dois primeiros filmes, Batman, de 1989, e Batman - O Retorno, de 1992), é fácil ver, desde o início, que se trata de mais uma metrópole violenta e corrompida como qualquer outra no mundo. No início de Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), quando o diretor mostra um bairro praticamente saído das telas de Norman Rockwell, ao seguir a vendedora de comésticos da Avon interpretada por Diane West o espectador sabe que ela é uma típica dona de casa americana.  Idem Pedro Almodóvar. A casa da Kika (idem, 1993) não poderia ser mais falsa, superlativa e sem noção. Mas não há dúvida: Kika, a personagem, desde o primeiro fotograma, é uma esposa um tanto frustada, como tantas da classe média espanhola. Aquela cor toda não consegue esconder sua solidão, e, melhor, ajuda a ressaltá-la, por mais paradoxal que seja.

No filme de Xavier Dolan existe isso. Quanto mais ele exagera nos cenários, quanto mais ele carrega nas cores, mais o filme ganha, vejam só, em densidade. Não interessa a Dolan uma profunda análise psicológica de seus personagens: ele quer é saber o que passa na cabeça oca de dois amigos, Marie (Monia Chokri) e Francis (o diretor e roteirista), quando se apaixonam pelo mesmo rapaz, Nicolas (Niels Schneider). Vão disputá-lo discretamente, só com olhares e pequenos gestos. Dolan foca é na fantasia desses dois avoados quando se deparam com a paixão, mesmo que o objeto do desejo não tenha a menor ideia do que está se passando (Nicolas, no caso, um estudante de literatura que lia o polêmico filósofo francês contemporâneo Bernard-Marie Koltès somente à noite “para não amolecer o cérebro”).

Como Dolan se interessa mesmo é pelas futilidades, o filme toma um adorável contorno de comédia romântica, mas, e lá vem o gênio de novo, todo mundo sabe que tudo aquilo se desmanchará na primeira lufada de vento. Eis uma maneira de se ver o filme: aproveite enquanto eles estão sonhando, fantasiando, masturbando-se pelo amado e comprando presentes caros, pois a ciranda do desejo dos amores impossíveis (ou imaginários), como todos nós sabemos, vai acabar em tristeza e desilusão.

Talvez pela pouca idade do diretor, há algumas gratuidades no filme. Uma, a associação óbvia de imagens de estátuas de deuses gregos (para ela) e os desenhos de Jean Cocteau (ele) para o loiro apolíneo, que já tinha uma coroa de louros na cabeça. Segunda (e pior) é a mãe, que aparece vestida de árvore de Natal – é a mesma atriz, Anne Dorval, que estreou o primeiro filme do diretor, Eu Matei Minha Mãe (J’ai tué ma mère, 2009). Há alguns relatos ditos diretamente para câmera com o intuito de mostrar que o fenômeno dos amores imaginários é universal. Coalhados de palavrões, antecipam as inevitáveis citações a Fragmentos do Discurso Amoroso, de Roland Bartres.

Para não dizer que não há absolutamente nada de original no filme, vai aqui uma, por mínima que seja: a maneira como Dolan filmou o bairro anglofônico-judeu Westmount, o mais chique de Montréal, um delírio da arquitetura neo-gótica incrustado com suas centenas de milhares de cafés e lojas de marcas famosas no monte que dá nome à cidade (o Mont Royal). Afora o cenário, tudo mais é cópia – se bobear, poderão dizer que é uma versão gay do filme do Bertolucci. Até a música de Dalida, tocada insistentemente, Dolan disse ter escutado pela primeira vez na trilha sonora de Kill Bill (Vol. 1, 2003; Vol. 2, 2004), de Quentin Tarantino.

Essa multidão de referências revela as origens do diretor: ele é norte-americano. Fala francês, canadense, sua referência são filmes europeus e asiáticos, mas ele é norte-americano. Não pretende nem finje se passar por inteligente: Dolan vai lá e copia na boa, sem culpa, mas com uma tal desfaçatez que o resultado final está longe de ser apenas mais uma citação, pois adquire uma nova conotação. E mais: arrasados, arruinados, destruídos, humilhados, os amantes imaginários terminam o filme caidinhos pelo ator Louis Garrel, para quem eles topariam com gosto refazer tudo de novo. 

Talvez os “críticos” brasileiros, esperando por um  “filme de autor” no estilo europeu, não tenham percebido que o filme de Xavier Dolan não é um “filme de arte”. Fica a dica.*

* Parágrafo modificado a pedido dos leitores.

Comentários (14)

Wendell Marcel | terça-feira, 14 de Agosto de 2012 - 03:27

Filme interessante. Usou ideias alheias e transformou-as em um novo filme.

Landerson DSP | quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013 - 19:12

Na moral, podem reclamar a vontade, mas eu adoro as críticas do Demetrius(o meu crítico preferido do Cineplayers). Acho elas divertidas e, de certo modo, bastante sinceras, apesar do espirito \"Do contra\".

Nilmar Souza | terça-feira, 16 de Fevereiro de 2016 - 06:00

Crítica do caralho.

Sdds, Demetrius 🙁

Felipe Ishac | terça-feira, 16 de Fevereiro de 2016 - 08:04

Demetrius era foda...

Sempre com bom humor e lucidez.

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