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Críticas

Cineplayers

Um retrato agridoce da atual situação dos Estados Unidos.

7,5

Em 1966 estreava nos cinemas americanos um filme chamado Esta Mulher é Proibida, adaptação de uma peça de Tennessee Williams. Era o segundo longa-metragem de Sydney Pollack e o primeiro roteiro que Francis Ford Coppola escrevia para um grande estúdio. A história, ambientada nos anos 30, no auge da grande depressão americana, acompanhava a chegada de um forasteiro (vivido por Robert Redford) a uma pequena cidade do Estado do Mississipi. A população logo percebe sua presença, mas não sabe exatamente o que ele veio fazer ali, naquele fim de mundo. Logo o mistério é esclarecido: o estranho é um funcionário do Governo e sua missão é comunicar o encerramento das atividades da ferrovia local. De uma hora para a outra, os habitantes se vêem sem seus empregos e o sustento do dia a dia.

Hoje, setenta anos depois, os EUA voltam a enfrentar uma nova crise econômica, talvez até mais grave que experimentada no século passado. Os ingredientes são os de sempre: escassez de crédito, falta de confiança do mercado, desvalorização da moeda, redução do nível de emprego, e um PIB que teima em não dar sinais de recuperação. Antenado com o seu tempo, Amor Sem Escalas é um dos primeiros filmes a abordar o assunto. A única diferença é que no lugar das ferrovias, entram em cena grandes corporações.

O protagonista da história é Ryan Bingham (George Clooney). Ele trabalha para uma empresa de outplacement. Sua especialização é comunicar aos funcionários dos seus clientes que seus empregos não estão mais disponíveis. O que, no fundo, é um modo mais educado de dizer que eles estão no olho da rua e que seus serviços não são mais necessários. Entre uma demissão e outra, Ryan ministra palestras motivacionais, nas quais prega a tese de que a vida é feita de movimento e que a busca da felicidade passa pela libertação de nossas amarras invisíveis, sejam elas com parentes, empregos ou memórias afetivas.

Suas duas profissões fazem com que ele passe o ano inteiro viajando ao redor do país. Seu habitat natural são os aeroportos e os hotéis. Como ele diz a certa altura: "para me conhecer, você precisa voar comigo". Tantas são as viagens que Ryan nutre um objetivo secreto: atingir a impressionante marca de 10 milhões de milhas aéreas, feito alcançado por apenas sete pessoas ao redor do mundo. Segundo Ryan, "isso é menos que o número de pessoas que pisou na lua". A conquista lhe daria o direito a um cartão personalizado emitido pela companhia de aviação, de ter seu nome pintado do lado de fora da aeronave e de viajar na cabine do piloto.

Coerente com o seu discurso, Ryan evita criar raízes e foge como diabo da cruz de relacionamentos mais sérios. Na sua agenda não sobra tempo nem para as suas irmãs. Uma delas está prestes a se casar e Ryan sequer conhece o futuro cunhado. Sua vida resume-se à sua valise, em que ele inclui apenas os itens estritamente necessários às suas viagens. Não é à toa, portanto, que não haja espaço na mala nem mesmo para a foto dos noivos.

Dois eventos trazem repentinas mudanças no cotidiano de Ryan. O primeiro deles atende pelo nome de Alex (Vera Farmiga), mulher de negócios, que ele conhece no bar de um hotel. Alex parece ser a reprodução feminina de Ryan. Assim com ele, Alex é independente, desprendida, sexy e adepta a relacionamentos fugazes, sem qualquer compromisso, e que duram até a hora da decolagem do próximo avião. Como Alex diz a Ryan em determinado momento: "eu sou igual a você, só que uma vagina".

O segundo episódio ocorre na sua empresa. Um belo dia, o chefe do setor, Craig Gregory (Jason Bateman), anuncia que está implementando um novo modelo de negócios. A partir daquele instante, os processos de demissão passariam a ser realizados à distância, por meio de uma espécie de videoconferência. A idéia partira da recém-contratada Natalie (Anna Kendrick) e parecia não ter contra-indicações. De um lado, a redução de despesas com viagens seria enorme; de outro, os funcionários permaneceriam mais tempo em suas casas, perto de suas famílias. Era tudo o que Ryan não queria ouvir.

Mesmo contrariado, Ryan é obrigado a levar Natalie a tira-colo nas suas últimas viagens. Na teoria, a moça podia ser um furacão de criatividade, mas na prática, ainda era completamente verde no trato com os futuros demissionários. Ryan e Natalie partem numa jornada pelo interior do país. De tempos em tempos, Alex se une ao trio. A vida daquelas três pessoas será alterada para sempre.

Ao contrário das aparências (e o infeliz título nacional contribui para isso), Amor Sem Escalas não é uma comédia romântica na sua essência. Antes disso, Jason Reitman está mais preocupado em discutir outras questões, como a solidão, o medo do comprometimento, a falta de contato (no sentido literal) entre as pessoas, tudo isso potencializado por uma das mais graves crises econômicas (e de confiança) da história americana.

A viagem de Ryan e Natalie nos revela um EUA pouco visto nos cinemas. Seus pontos de parada não são Los Angeles ou Nova York, mas sim cidades menos badaladas como Kansas City, Omaha, Tulsa, Detroit, Desmoine e Miami. Essa é a America real, interiorana, invisível e, mesmo assim, responsável em grande parte para a construção da riqueza do país. Reitman faz questão de não dourar a pílula e mostra um Estados Unidos impotente, aparentemente sem força de reação, numa espécie de nocaute técnico. Em certo momento, Ryan e Natalie vão a uma empresa em Kansas City e se deparam com o local praticamente às moscas. Ali não havia mais nada a fazer. Até os funcionários que seriam demitidos já tinham ido embora. Mais à frente, em Detroit, a lista de pessoas a serem dispensadas é tão grande que ocupa uma folha inteira de papel. A visão de Reitman sobre a atual situação econômica dos EUA parece ser resumida numa frase pronunciada por Craig: “a indústria automobilística está falida; os empreendimentos imobiliários, parados. Esse é o nosso momento!”.

O roteiro de Amor Sem Escalas contém duas interessantes sub-tramas, que refletem bem a opinião que Reitman tem sobre seu país e seu povo. A primeira delas está no objetivo que Ryan tem de alcançar as tais 10 milhões de milhas aéreas. Ryan deixa claro seu ponto-de-vista: ele não gasta um centavo em hotéis, restaurantes e com locações de veículos se, em troca, não lhe for creditado as benditas milhas. Estaria Reitman querendo nos dizer que essa característica nada altruísta de Ryan seria extensível aos americanos em geral? Estaria aí um dos motivos invisíveis da crise? Além disso, fica claro que o que move Ryan não é aquilo que ele poderá desfrutar com a conquista (e olha que com a quantidade de milhas que ele possui seria possível dar várias voltas ao mundo), mas sim a ostentação. Em outras palavras, sua meta são as milhas pelas milhas, o prêmio pelo prêmio, o dinheiro pelo dinheiro. Mais uma vez vale a pergunta: Reitman não estaria nos querendo dizer que o povo americano, com a sua cultura pelo lucro fácil e sem um propósito definido, não teria contribuído para a turbulência pela qual os EUA atravessam?

A outra sub-trama está nas fotos que Ryan tira da figura de papelão da sua irmã e do seu cunhado, inserindo-a no contexto de paisagens famosas dos EUA. O roteiro não esconde o fato de que a idéia foi inspirada no filme francês O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, quando a protagonista pede para sua amiga aeromoça tirar várias fotos do gnomo do jardim do seu pai. O desejo é atendido e o pai, com inveja do gnomo, parte para experimentar pessoalmente as mesmas aventuras que o seu objeto inanimado. Ryan faz o mesmo. Ao final, ele tem em mãos um mosaico de fotos, uma reunião de paisagens e situações ilusórias. Reitman parece nos passar o recado de que na gênese da crise econômica reside a crença da sociedade num falso sonho americano, num american way of life que não mais existe.

A solidão e a fragilidade dos relacionamentos humanos são outros dos temas abordados por Amor Sem Escalas. O trio central de personagens retrata bem esse sentimento. Tome-se Ryan, por exemplo. Por fora da casca, ele se declara um solteirão convicto, aquele que nunca pensou em ter filhos. No entanto, o discurso já não parece corresponder à realidade. Ele passa a ver Alex como algo mais do que um mero passatempo. E seu olhar  protetor para Natalie, quando esta é desafiada a anunciar sua primeira demissão, revela um pai em potencial, que possivelmente até ele mesmo desconhece. Ryan parece ter percebido que o seu tempo está passando e que talvez tenha chegado a hora de dar a devida importância a outros aspectos da sua vida. Um pequeno sinal dessa sua preocupação nos é dado logo no início do filme, no trocadilho existente na conversa dele com a aeromoça. Outra prova é a sua decisão de rever suas irmãs, que já o consideravam um elemento estranho na família.

Natalie, por sua vez, faz o tipo CDF. Em seu projeto de vida, transformar-se numa alta executiva é questão de tempo. Ela reconhece que os dividendos de que desfruta hoje não existiriam se não fosse a luta de uma geração de mulheres anterior à sua. No entanto, movimentos feministas à parte, Natalie é uma romântica. Ela acredita num amor idealizado, na figura de um príncipe encatado. Tanto que não pensa duas vezes em recusar uma proposta de emprego em nome do relacionamento com o seu namorado. Mas lá pelas tantas, Natalie também se vê sozinha, dispensada por meio de uma mensagem recebida no seu celular.

Para dar conta de todos os seus temas, Amor sem Escalas conta com interpretações inspiradas de seu trio central. Há tempos que George Clooney deixou pra trás a imagem do coroa bonitão. O público já percebeu que ele é muito mais que isso. Clooney é a reunião de vários astros do passado num só. Ele possui a beleza e a sofisticação de um Cary Grant, o jeitão comum de um James Stewart, e o semblante sensível e de menino abandonado de um Gary Cooper. Clooney lança mão de toda essa artilharia e compõe um personagem que ultrapassa o limite da tela. É o tipo de interpretação que parece fácil, mas não é. Por sua vez, as personagens femininas são muito bem defendidas por Vera Farmiga (num papel oposto ao da frágil psicóloga que desempenhara em Os Infiltrados) e Anna Kendrick (que prova estar pronta para aceitar desafios maiores do que a série Crepúsculo).

Amor Sem Escalas é sem dúvida o filme mais ambicioso de Jason Reitman e representa um claro avanço de qualidade em relação aos seus dois – bons – trabalhos anteriores (Obrigado por Fumar e Juno). O roteiro (escrito em parceria com Sheldon Turner e adaptado do romance escrito em 2001 por Walter Kirn) consegue costurar seus diversos temas de forma bastante satisfatória. Mais que isso, tem a coragem de entregar um final plenamente coerente com o espírito da obra. O tom doce-amargo dos seus filmes aproximam Reitman de outros cineastas como Alexander Payne (embora diferentes em tudo, Amor Sem Escalas me fez lembrar de Sideways - Entre Umas e Outras e Eleição), Cameron Crowe, James L. Brooks, e, em seus momentos mais inspirados, Billy Wilder. Reitman pode não fazer um cinema transgressor e radical na temática e na linguagem. Mas é sem dúvida um bom contador de histórias e sempre com algo interessante a nos dizer.

Comentários (1)

Matheus Gomes | sábado, 21 de Julho de 2018 - 21:28

Filmão! Além de inteligente em narrativa, o humor também é bastante perspicaz!

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