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Críticas

Cineplayers

Uma opinião detalhista sobre o novo filme deste belo cineasta.

6,0

François Ozon é um caso único no cinema francês. Sem ter ainda completado 40 anos de idade, ele é talvez o diretor mais prolífico e eclético de seu país. Desde sua estréia nos longas-metragens, em 1998 (depois de um extenso currículo nos curtas), com a comédia de humor negro Sitcom – Nossa Linda Família, Ozon lança praticamente um filme por ano. Uma espécie de Woody Allen europeu. Com o selo de qualidade que seu nome adquiriu com o passar destes poucos anos, invariavelmente seus trabalhos são figurinhas carimbadas nos principais festivais ao redor do mundo. Foi o caso de Gotas D´Água em Pedras Escaldantes, selecionado para a Berlinare de 2000 (vencida pelo americano Magnólia); Sob a Areia, estrelado por Charlotte Rampling e concorrente a três Césars em 2002; Oito Mulheres, talvez seu maior sucesso comercial, tanto na França quanto no estrangeiro e com seu elenco de estrelas liderado por Catherine Deneuve e Fanny Ardant, integrou a mostra competitiva do Festival de Berlim de 2003 (vencida, naquela ano por Domingo Sangrento e A Viagem de Chihiro); e, por fim, Swimming Pool – À Beira da Piscina, novamente com sua musa Charlote Rampling, exibido em competição no Festival de Cannes em 2003 (cuja Palma de Ouro foi parar nas mãos de Gus Van Sant, por seu Elefante).

Prova da sua incrível produtividade é que, depois deste O Amor em 5 Tempos, que estreou na França em 2004 e só agora ao Brasil, Ozon já lançou O Tempo que Resta, pelo ganhou o segundo lugar do Festival Internacional de Cinema em Valladolid, na Espanha, em 2005. Com O Amor em 5 Tempos também não foi diferente: o filme concorreu ao Leão de Ouro no Festival de Veneza, vencido ao final por O Segredo de Vera Drake, de Mike Leigh.

O Amor em 5 Tempos. No original, 5x2. Um título que, a rigor, praticamente resume o filme por inteiro. Ozon se propõe a contar a vida de um casal através de cinco momentos relevantes de suas vidas. A diferença é que a estrutura narrativa é colocada na ordem inversa. Assim, o espectador logo é apresentado aos protagonistas no momento da formalização do divórcio, e vai regredindo na história até o primeiro encontro da dupla, ocorrido meio que por acaso, durante umas férias na Itália.

Os personagens centrais são Marion (Valeria Bruni Tedeschi) e Gilles (Stéphane Freiss). A fita pouco se descola de ambos. Ainda assim, pelo sua própria construção esquemática, não ficamos sabendo muito do passado de ambos. É possível, no entanto, inferir características de cada um, pelas feições e personalidades que eles vão “adquirindo” ao longo da trama.

À medida que o filme avança – ou retrocede –Gilles vai ficando com o rosto mais à mostra, sem a barba cerrada e as linhas de expressão que demonstra no início. Em outras palavras, Gilles vai rejuvenescendo, revelando-se um homem bonito e em forma. Por outro lado, mostra-se também uma pessoa imatura, que apesar de possuir um bom posto de trabalho, não tem coragem de comparecer ao nascimento do seu filho Nicolas, apesar de chamado a tempo pela esposa. Além disso, Gilles não transparece ser daqueles mais adeptos à fidelidade conjugal ou mais chegado a compromissos amorosos mais sérios. Em determinada passagem do filme, durante um jantar íntimo, confessa ao seu irmão gay e respectivo namorado que participara de orgias com a própria esposa, e que não pensou duas vezes em ter relações com outras pessoas (homens e mulheres) na frente de sua parceira, quando esta não conseguiu embarcar na experiência. Ao final – ou no início – vemos que quando o casal central se conhece, Gilles está comprometido com Valerie, sua namorada há quatro anos e com quem já pensa em se casar. Nem mesmo isso o impediu de investir em Marion, praticamente sob às vistas de Valerie.

O mesmo pode se dizer em relação a Marion. Se no início da fita, seu olhar guarda algo de melancólico, quase sempre marejado de lágrimas, ao longo da projeção passamos a conhecer uma outra Marion, mais alegre, que não se importa de viajar sozinha nas férias. Na primeira relação sexual do casal (ou a última), a personagem é extremamente tímida, esconde-se por baixo de toalhas e cobertores. O recuo da história vai nos mostrar uma Marion bem mais liberal, que tolera participar de festas de swing, de se insinuar para o namorado gay de seu cunhado, e de realizar um sexo proibido com um estranho que surge de dentro das folhagens, na hora mais inusitada possível.

Apesar da estrutura invertida, que faz com conheçamos desde logo o destino do casal, nos pegamos torcendo por aquele romance. Queremos que os dois se entendam. Ao nos lembrarmos da impossibilidade do fato, o filme assume um tom melancólico, especialmente à medida que seu fim se aproxima e a dupla vai mais e mais se apaixonando. O mar emoldurado por um bucólico pôr-do-sol estampado na última cena traduz-se num falso happy-end. Só nos resta esperar, com uma tristeza no ar, para que Marion e Gilles, entre eles ou com outros parceiros, acertem da próxima vez.

Não sei se esta foi sua intenção, mas Ozon parece demonstrar sua descrença em relação à instituição do casamento. Não digo isso apenas pela opção de já começar pela separação. Essa é a evidência mais óbvia, mas que poderia ser rebatida pelo argumento de que a inversão dos fatos é apenas uma escolha de narrativa. O diretor passa essa mensagem mais cética sobre o matrimônio em várias outras passagens: em nenhum dos cinco flashes, vemos o casal Marion e Gilles exatamente felizes. No segundo episódio, o cunhado de Gilles indaga à Marion se o casal já superou determinados problemas, sem especificar quais, o  que indicaria que a união, naquele momento, já não corria às mil maravilhas Ainda neste episódio, Gilles, no meio da noite, abandona a cama de casal e vai dormir com o filho, que supostamente estaria chorando. Pelo seu olhar de soslaio, percebemos que a história não era bem essa. No terceiro, Gilles simplesmente tem um bloqueio inexplicável que o impede de estar ao lado da esposa no momento do parto. E no quarto, o do casamento propriamente dito, a falta de sexo na noite de núpcias prenuncia os desencontros futuros.

Ozon trabalha de forma sutil e hábil algumas ambigüidades: Marion e Gilles não transam logo após a cerimônia do casamento. Vencido pelo cansaço da festa, Gilles sequer vê a tentativa de Marion seduzi-lo com um strip-tease improvisado. Ao contrário, o casal vai para a cama, ainda que de forma desapaixonada, em seguida à assinatura dos papéis do divórcio. Como se a relação íntima dos ex-cônjuges dependesse do rompimento do laço de fidelidade e de compromisso. Além disso, é particularmente feliz a escolha de entrecortar os episódios com canções italianas, que pontuam o estado de espírito dos personagens nos respectivos momentos do filme.

Por último, reparem como as extensas e minuciosas citações da legislação francesa no ato da separação se aproximam – ainda que para dizerem coisas opostas – daquelas  mencionadas na igreja, quando o casal encontra-se no altar, celebrando o matrimônio religioso. Os artigos de lei repetidos à exaustão pelo juiz de direito define os detalhes da divisão de bens, da pensão e do regime de visitas do filho, enfim o encerramento de uma vida a dois. Os outros artigos, pronunciados pelo padre, estabelecem justamente o contrário.

Em síntese: a mesma lei que disciplina a relação jurídica da união entre as pessoas, também disciplina a relação jurídica da quebra desta mesma união. No fundo, num mundo civilizado como o nosso, inteiramente codificado por leis, artigos, incisos e parágrafos, cuja única função é permitir que não vivamos no absoluto caos, o que faz nos separarmos uns dos outros somos nós mesmos.

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