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Críticas

Cineplayers

A cinebiografia da aviadora Amelia Earhart é um filme que, com o perdão do trocadilho, não decola.

4,0

Em geral, as cinebiografias sofrem de dois problemas congênitos. O primeiro deles é a supremacia do biografado em relação ao próprio filme. O que era para estar em primeiro plano, é relegado para o segundo. Fala-se da pessoa e não da obra. No mais das vezes, essa inversão de valores pode esconder alguns dos defeitos do longa-metragem. O outro problema é a construção do roteiro a partir do simples enfileiramento dos fatos mais importantes da vida de uma pessoa. Algumas das produções deste subgênero conseguem escapar destas armadilhas (Amadeus, por exemplo). No entanto, a grande maioria já não tem o mesmo êxito (Ray ilustra bem o que quero dizer). Infelizmente Amelia se encaixa na segunda categoria. 

Amelia Earhart nasceu em 1897. Aos 35 anos, ficou mundialmente famosa ao se tornar a primeira aviadora a cruzar o Oceano Atlântico num vôo solo. Ela foi casada com o editor George Putnam, amiga de Eleanor Roosevelt, amante do empresário Gene Vidal (pai do futuramente famoso Gore Vidal). Em 1937, quando realizava o sonho de dar a volta ao mundo, o avião que pilotava desapareceu no meio do Oceano Pacífico, supostamente por falta de combustível. Seu corpo nunca foi encontrado.

A narrativa começa justamente quando Amelia se prepara para iniciar essa viagem. De mãos dadas com seu marido George Putnam (Richard Gere), ela anuncia aos jornalistas que a cercam que permanecerá voando enquanto viver. O avião decola e o desafio começa. No comando daquela aeronave, ao lado dos pássaros, das nuvens, do céu, e do sol,  fará uma recapitulação da sua vida. Por meio de longos flashbacks, conheceremos um pouco de seu passado, da sua paixão pela aviação, da sua sede pela liberdade, da sua dificuldade de manter um padrão convencional de comportamento, seu casamento e seus romances extra-conjugais (com o personagem de Gene Vidal, vivido por Ewan McGregor). Se no papel essa estrutura até que parece adequada (a viagem funcionaria tanto num nível exterior – a busca pelo sonho da protagonista – como interior – as lembranças dos acertos e erros cometidos ao longo de uma vida), na prática, o filme não funciona.

Talvez o principal problema de Amelia esteja na fragilidade da construção do arco dramático dos seus personagens. O roteiro (de autoria de Ronald Bass e Anna Hamilton Pehlan, por sua vez baseado em duas biografias da aviadora) não consegue resolver adequadamente nem mesmo a premissa básica da história: de onde vem a obsessão da protagonista pela aviação? Logo na abertura, vemos a jovem Amelia observando o sobrevôo de um avião sobre os campos da sua terra natal, no Kansas. Foi o que bastou: "Eu tinha que voar!", prenuncia a garota. Logo em seguida, ela complementa que seu gosto pelo movimento foi herdado do seu pai, um entusiasta em viagens. Na cena seguinte, Amelia já surge adulta, perfurando os ares com seu avião. Com explicações tão simplistas assim, o filme não consegue fazer com que o público embarque naquela paixão. Não captamos o que move aquela mulher: seria a busca de novos desafios? Necessidade de ver seu talento reconhecido num mundo eminentemente masculino? Ou simplesmente a competitividade em si mesma?

Além de não desenvolver esse vínculo entre Amelia e a aviação, o filme, estranhamente, não fornece maiores dados sobre o seu passado. Sabemos que seus pais estão vivos, mas que pouco ou quase nada participam das suas aventuras. O roteiro não entra em maiores detalhes sobre eventuais problemas de relacionamento entre eles ou se a separação era motivada pelo espírito indômito da filha. A certa altura, quando Amelia confessa ter vergonha de suas pernas (daí o uso constante de calças compridas), há uma leve referência à sua possível homossexualidade, mas o assunto é descartado instantaneamente. As contribuições de Amelia ao desenvolvimento da aviação americana são abordadas lateralmente e de forma confusa. Em determinado momento, ela se envolve na criação de uma ponte aérea ente Washington e Nova York. No entanto, não sabemos se sua dedicação é derivada de um sincero desejo pela melhoria daquela atividade nos EUA ou se, por trás de tudo aquilo, não há, digamos, um interesse mais mundano. Amelia parecer ser um filme que tem vergonha de contar a própria história.

Outro ponto de sustentação do filme é o romance entre Amelia e seu mentor, o editor George Putnam. E, nesse particular, o roteiro se revela mais uma vez falho. Eles se conhecem em 1928. Putnam está selecionando um rostinho bonito para acompanhar o vôo sobre o Atlântico que ele está promovendo. Amelia não gosta muito do papel de coadjuvante, mas aceita. Após os problemas técnicos iniciais, ela assume o controle do avião e faz com que ele chegue no Velho Continente. Entra para a história como a primeira mulher a realizar aquele feito, uma Charles Lindenbergh de saias (não à toa ela passa a ser chamada de Lady Lindy). Ao chegar nos EUA, Putnam sente-se enciumado com a disputa em torno da sua pupila. Ela é a nova namoradinha da America e não tempo para ele. O espectador se pergunta: mas desde quando esses dois estão namorando? De onde veio todo aquele amor? Antes da viagem a relação entre eles era estritamente profissional. Esse pulo repentino no desenvolvimento da psicologia dos personagens, torna as ações de ambos incoerentes e falsas. Em cinema, pressa não leva a lugar nenhum.

Muito provavelmente Amelia é um produto do prestígio de Hilary Swank. O par de Oscars que ela guarda na estante lhe dá cacife para, mesmo não sendo uma rainha das bilheterias (longe disso), torrar sua grana em projetos mais pessoais. Em Amelia, ela figura como produtora executiva. Nessa condição, Swank viu na diretora Mira Nair a pessoa ideal para dar as ordens por trás das câmeras. Além de conhecer a cultura dos EUA (alguns de seus filmes, como Mississipi Massala, Tudo Por um Sonho e Feira de Vaidades são produções eminentemente americanas), Nair também não deixa de ser uma mulher que transita há algum tempo num ambiente primordialmente masculino (vide os quase cem anos que a Academia demorou para premiar uma mulher com o Oscar de melhor direção). Essas duas características lhe permitiam falar com propriedade sobre personalidade feminina e essencialmente americana. 

Sob esse aspecto, Mira Nair parecia ser a escolha certa. No entanto, apesar de alguns pontos altos em sua carreira, é fato que ela é daquelas cineastas insossas, em cujos filmes não se percebe uma marca mais pessoal, um carimbo de copyright. Seu cinema é um misto de Richard Attenborough e Anthony Minghella. Em Amelia, não é diferente. Se a fotografia e a trilha sonora estão no lugar (talvez demasiadamente no lugar), a narrativa é opaca, tradicional, sem grandes arroubos. Pra piorar, a mis-en-scene de Nair é de gosto duvidoso. Num certo momento do filme, ela enquadra Gere e Swank em planos oblíquos, sem qualquer motivo aparente e que não agregam nada à narrativa. Há erros primários no uso do elenco de apoio (na cena em que Amelia profere uma palestra para um grupo de adolescentes, um rapaz sentado na primeira fileira está nitidamente olhando para um ponto fora da marca) e as sequências de aviação não são lá essas coisas. Tudo isso, sem contar as tomadas iniciais, em que o avião de Amelia corta o céu com a música portentosa de Gabriel Yared, e que parecem ter sido tiradas do material não filmado de Entre Dois Amores.

Hilary Swank não está mal. Sua semelhança física com a verdadeira Amelia é impressionante e isso ajuda a caracterização. Mas ela sofre com um roteiro que simplesmente se recusa a lhe dar cenas mais marcantes. Swank se limita a fazer expressões de preocupação quando o avião enfrenta uma tempestade, e de saudosismo quando diante do sol ou da lua.

Richard Gere tem a ingrata tarefa de servir de escada para a protagonista, num papel cujas motivações nunca são explicadas. Ele faz de tudo pela sua amada (corre atrás de financiamento para os voos de Amelia, coloca-a como garota propaganda de marcas de cigarros, roupas, valises, etc.) e não recebe nada em troca. Os constrangimentos que é obrigado a aceitar (tanto nas condições que Amelia  impõe para aceitar seu pedido de casamento, quanto na cerimônia propriamente dita) o tornam demasiadamente passivo e submisso. Gere parece também não concordar com as ações de seu personagem e diz sua falas de forma mecânica e sem alma.

O restante do elenco não tem um tempo de exposição suficiente para deixar uma maior impressão. Ewan McGregor não sabe exatamente se está interpretando um aproveitador ou um admirador da aviação. Mia Wasikowska, a nova Alice no país das Maravilhas, faz a aviadora Elinor Smith, que se inspira em Amelia para conquistar seu espaço (outra personagem interessante e que poderia ser melhor desenvolvida). Por fim, Christopher Eccleston, mais conhecido pelo papel de marido de Nicole Kidman, em Os Outros, vive o navegador de voo Fred Noonan.

Com o perdão do trocadilho, Amelia é um filme que não decola.

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