8,0
A história do livro de Lewis Carroll, da menina que segue um coelho falante (e atrasado!) até uma toca que a transporta para um mundo alternativo, já foi fonte para inúmeras adaptações e releituras no cinema e na própria literatura, talvez pelo fato de ser a mais famosa variação dos contos infantis sobre crianças perdidas tentando voltar para casa. No entanto, a grande maioria dessas adaptações nem passaram perto de assimilar o tom sombrio e a lógica impossível daquele país de maravilhas regido pela imaginação nonsense de Alice, a exemplo da famosa transposição em animação da Disney, em que a história original ganha a condução de um conto de fadas.
Fascinado pelo universo dos livros de Carroll, o cineasta tcheco Jan Svankmajer é tão apaixonado por Alice que fez de seu primeiro longa-metragem uma nova adaptação dela, se aproximando o máximo possível do obscuro nível de abstração da história original. Após inúmeros curtas de caráter estranho e sombrio, entre eles uma narração bizarra de um poema de Carroll em Jaguardarte (Zvahlav aneb Saticky Slameného Huberta, 1971), Svankmajer finalmente se arriscou em algo mais ambicioso com seu inigualável Alice (Neco Z Alenky, 1988), um ousado e esquisito encontro de live action e animação em stop motion que foge de qualquer outra adaptação ou variação de Alice no País das Maravilhas e, justamente por isso, talvez seja a versão mais fiel do livro no cinema.
O próprio diretor refere-se ao filme como um sonho amoral, sem o respaldo de alguma lição ou conclusão educativa que justifique qualquer uma das maluquices inventadas por Carroll. Uma vez livre do compromisso com o público infantil, Svankmajer troca o lúdico pelo tétrico e erige um universo regido não pelo sonho, mas sim pelo pesadelo de uma criança entediada. Nas sequências iniciais, sua câmera se locomove pelo quarto de Alice e revela todos os itens e elementos que serão assimilados por ela no terreno onírico e como cada um deles será revertido em uma fonte de medo e/ou confusão. A partir do ponto em que o coelho – o estopim da trama – surge, o diretor não consegue esconder sua pouca experiência com longas-metragens e acaba fragmentando todo o filme em pequenas esquetes bizarras, como se Alice fosse composto por uma junção de curtas aleatórios que têm em comum apenas a presença da menina e do coelho.
Ao mesmo tempo, essa opção narrativa acaba casando muito bem com a ideia de um pesadelo filmado, reforçada por uma atmosfera totalmente surrealista de traços disformes, paisagens desenhadas a mão em papéis de parede, ambientes assimétricos e, muito ao contrário da Disney, uma paleta de cores frias e desbotadas. A narrativa também é escassa, quase como a de um filme mudo, pontuada apenas por breves diálogos proferidos pela boca de Alice filmada em planos bem fechados.
A principal força de Alice reside da ciência de Svankmajer de que a história não passa de uma manifestação do inconsciente da menina, de modo que ele não recorre a nenhum tipo de inibição ou barreira moral e lógica, libertando-se num crescente cada vez mais enlouquecedor e assustador de um universo de símbolos e elipses em que absolutamente nada faz pleno sentido – uma experiência puramente sensorial de um filme que se revela, no fim das contas, cem por cento experimental. É a assimilação mais forte de Alice no País das Maravilhas dentro da linguagem cinematográfica, o veículo pelo qual a tão famigerada história de Carroll ganhou sua interpretação mais fiel, a tal ponto que é possível achar que ela funciona mais nesse universo imagético do que nas páginas de um livro.
Para quem ainda não conhece esse fascinante trabalho, vale a pena conferir seu lançamento em DVD pela distribuidora Obras-Primas do Cinema, que acaba de chegar às lojas e traz um excelente conteúdo extra com 5 curtas inspirados no livro de Carroll, dois deles inéditos, e uma fotografia dos bastidores da produção.
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