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Críticas

Cineplayers

A imortalidade do family movie.

8,0
Se localizado no que se poderia chamar de uma historiografia do cinema musical, Agora Seremos Felizes (Meet me in St. Louis, 1944) absorve para si a inescapável afetação da marca histórica – em outras palavras, e assim o é para todo o filme, mesmo em que graus mais discretos, é preciso circundá-lo num contexto, e seu caso é de fácil inferência pelo atravessamento que foi nada menos que a Segunda Guerra Mundial. Guerras afetam economias, e como indústria, o cinema se desequilibra por reverberação. Mas a questão aqui não foi tanto financeira quanto ideológica: se o remanejamento do que viria a ser a moeda mais poderosa do mundo se canaliza para a indústria bélica, os estúdios, de bolsos menos fartos, precisam produzir (promover o arranjo e fabricar ideias) filmes cuja significância amacie o tecido social, que a sétima arte abrace o aparente paradoxo e se sirva do entretenimento para obnubilar o horror que se estendia no outro lado do oceano.

Eis que Minnelli retrocede ainda mais no tempo, para o início do século XX, e, por processos de transferência estilística, localiza e transforma o musical nas quatro paredes de um casarão onde ocorrerá o maior embuste de um dos mais basilares elementos narrativos do gênero. Mas antes que se chegue lá, é preciso abarcar, ainda que brevemente, o que significou ter descolado do musical os incansáveis números de sapateado de Ginger & Fred, da histeria burlesca do teatro de revistas ou das coreografias geometricamente hiperbólicas e surreais de Busby Berkeley para nele inserir números mais contidos, melódicos e sobretudo restritos, pelo menos na maioria de suas vezes, a um ou dois performers, como se para alimentar tudo aquilo de que o star system sobrevive. 
Por neste musical de Minnelli a princípio não podermos visualizar grandes coreografias, facilmente pode-se ser levado a acreditar que é possível, como resolução, a imortal mistura do carisma e da voz como artimanha suficiente, mas o que o filme vem a mostrar, mais pela persistência histórica que o gênero carrega do que por despreparo visual, é que ao dispositivo discreto da mise en scéne podem faltar, muitíssimo aparentemente, decoro e elaboração, mas, a bem verdade, nunca uma prática organizacional (literalmente: dispor, arranjar em cena) operou tanto com os fins de apagar os próprios rastros de seu funcionamento. No momento 'x', a câmera avança até tal ponto para capturar a personagem 'y', que deve subir até ali e ficar ligeiramente acima do personagem 'z', deixando que a luz de um outro ponto incida sobre seu rosto e a ilumine como que por imantação divina. 

E nesse jogo de cenário o que existe de propriamente musical pode despontar. Por suas aparentes contenções, que no fundo são só deslocamentos de força dos números dançantes e coreografias excessivas para um jogo de câmera, voz e disposições do corpo, os momentos musicais, aqui, saem do status da suspensão irreal da narrativa e se organizam em torno de musicalizações mais ou menos gestualizadas de sentimentos (o amor não correspondido, o casamento duradouro, etc) – mesmo com os números em grupo, canta-se sobre uma emoção que pertence ao coletivo, quase sempre com tons de divertimento. É como se aos personagens fosse necessário, em momentos-chave e minuciosamente concebidos, dar vazão a alguma emotividade, como se fossem levados por uma correnteza, um arroubo excessivamente sentimental que só pode ser despejado através do canto, e assim o fazem. Mas não se fala em falta de irrealidade como se fosse minimamente concebível, na ficção comum ou ''na vida'', que de um momento ao outro se possa simplesmente cantar para ilustrar uma sensação – é só que Minnelli parece ter encontrado, às suas maneiras, um modo de encaixar a carga das cenas ao número musical, e assim o fazer de forma eminentemente mais cinematográfica, retirando um pouco do gênero a dependência da ópera ou do teatro que tanto o marcam até hoje.

Retomando agora o truque transferencial de que se falou acima, pergunta-se: o que é inerente à quase toda narrativa musical, sobretudo se esta trata de um romance a ser consumado? Ora, que o par, ou os pares que a compõem, em algum momento da narrativa, e geralmente pelas razões mais tolas possíveis, entrem em desentendimento. E de fato, é o que acontece com as duas irmãs mais velhas (Garland e Bremer) até que a narrativa se finde. Mas há ainda um desacordo maior, mais brutal e ameaçador, e que paradoxalmente se traveste no maior símbolo presente e corporificado em múltiplos personagens: no momento em que é anunciada a mudança da família para Nova York, o patriarca insere um prenúncio de separação cujo abalo é uma desmesura a todo o ideário da família nuclear americana, e o abandono da cidade interiorana onde todos arraigaram esperanças e do qual extraíram formação moral tem o peso avassalador de uma expatriação. Se o Sr. Smith é o elemento masculino do casal a se desmanchar, seu oposto é exatamente o arcabouço de valores que a instituição carrega. 

Idealizado e construído como family movie, parece haver para o filme de Minnelli um reforço extra que o apelo ao gênero propicia. Porque tudo no musical funciona como uma folha de papel que se dobra e se fecha perfeitamente sobre si mesma, tudo precisa se articular pelas vias de levar ao desfecho absoluto e lucrativo para todos. Dividido em quatro blocos ilustrados por estações do ano, os humores do filme parecem variar com as mutações do tempo; para todos que desejam, como que por milagre natalino, casamentos são arranjados – é possível inferir até o casamento do irmão, cujo papel na família é o menos destacado; o desgosto de Garland por não poder ir ao baile torna-se, no fim, vantajoso para mais de 3 personagens. Contemplar toda a ritualística anual de festividades e aquela de longo prazo para uma vida (o casamento, o amor, a família), reinventar todo um gênero, inserindo nele uma subversão narrativa para suavizar os horrores do contexto histórico, catapultar uma das mais simbólicas estrelas de Hollywood e imortalizar o 'Have Yourself a Merry Little Christmas' – parece ser este mesmo o talento de Minnelli: concentrar uma amplidão de contribuições para o cinema e nele deixar um vasto terreno de obras-primas.

Comentários (1)

Augusto Barbosa | segunda-feira, 26 de Setembro de 2016 - 19:12

Tô ligado que a essa altura do campeonato já é uma constatação óbvia, mas foda-se: Leal melhor comentarista da obra de Minnelli aqui, suprindo uma lacuna crítica secular do site. Botando pra lenhar, na moral.

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