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Críticas

Cineplayers

A reminiscência do passado e o expurgo do futuro.

7,5
Em seu último filme antes de falecer aos 90 anos em 2016, Wajda escolheu como tema a vida do artista plástico polonês Wladyslaw Strzeminski, um artista plástico que superou a mutilação física da Primeira Guerra para tornar-se um dos principais nomes da arte de vanguarda em seu país com suas pinturas abstratas, participar ativamente da Revolução Comunista e lecionar sua “Teoria da Visão” na Escola de Arte. Sua vida levou um fim especialmente trágico, quando após reformulações nas diretrizes do Partido da União Soviética, toda a arte com algum nível de abstração foi banido para dar lugar ao realismo social, forma de expressão “chapa-branca” que visava criar obras que dialogassem com as massas proletárias e as estimulassem a trabalhar e cooperar com o futuro da URSS. 

Tragicamente, Strzeminski sofreu uma espécie de “assassinato cultural”, com sua recusa em concordar com as diretrizes artísticas das figuras de autoridade de seu país sendo retaliada com expulsão da Escola de Belas Artes, revogação de sua documentação e destruição de suas obras públicas. Morreu de turbeculose avançada aos cinquenta e nove anos, deixando uma filha órfã. 

A crítica ao regime totalitarista que governou a Polônia por décadas sempre foi uma das principais críticas que Wajda fez questão de inserir em seus filmes; desde os anos 50, filmes como Cinzas e Diamantes, Geração, Canal, passando por o Homem de Mármore e O Homem de Ferro nos anos 70 e 80 e chegando em filmes como Katyn e Walesa na década de 2000, falam da história recente da União Soviética e, em filmes que combinam expressividade e realismo, discutem temas como liberdade individual, repressão autoritária, consciência e história. Em seu “exílio” fora da Polônia dos anos 80, é marcante sua obra francesa Danton - O Processo da Revolução, onde a Revolução Francesa mostra como foi de bem intencionada a terror descontrolado e assustador em poucos momentos. 

Em seu canto do cisne Afterimage, nome dado devido a um dos aspectos da Teoria da Visão de Strzeminski - a persistência retiniana, imagens que ficam em nossa visão enquanto seguimos nossos olhos para o próximo objeto de interesse, o que ajudou no desenvolvimento de muitas técnicas das artes plásticas, como o impressionismo - Wajda sintetiza a crítica toda na figura do seu protagonista, encenado um “drama de câmara”, ou um “kammerspiel”, como era chamado na Alemanha na época do expressionismo; o drama de um protagonista determinado e utópico que sofre uma via crucis degradante e humilhante para conseguir sobreviver. 

A pintura livre de compromissos que não sejam estéticos é a ruína de Strzeminski como é, por exemplo, a cruz de Zé do Burro em O Pagador de Promessas ou o emprego do Porteiro do Hotel em A Última Gargalhada; sabem que na hora que desistirem de seus ideais estarão mortos, e suas ideias é a única coisa que resta quando seus antagonistas - como o ministro da Cultura da URSS, que diz na frente do artista que ele “deveria morrer atropelado” - passam a destruí-los socialmente.

Wajda entendia o impacto que o regime de décadas provocou na Polônia, como o passado ainda impacta o futuro, e como cada pequeno ato de resistência por parte de Wladyslaw foi fundamental para a resistência da arte não como máquina de propaganda governamental mas como uma força independente e resistente. Filma em poucas locações, utiliza diálogos mais narrativos que psicologizantes, usa uma música grave e cadenciada para compôr sua atmosfera de peso; quando as mesmas situações do início do filme - pintar, comer a comida da empregada, expressar suas ideias - repetem-se, mas contextualizadas de maneira degradante, o autor nos mostra o grande passado - através das lentes do amargo presente. 

Preocupado com os contextos sociais de sua época, o diretor sempre fez questão de resgatar determinados episódios históricos em seus filmes - como o “Terror” da Revolução Francesa e o Massacre da Floresta de Katyn - para mostrar a autoridade, sempre unidimensional, franca e cruel - como uma ameaça externa à maior batalha, aquela que ocorre principalmente na mente do protagonista, em sua determinação e resolução para manter-se intocado pela moral vigente. Apenas com o passado que insistiram em destruir, a da arte de vanguarda na URSS, que poderia começar a se pensar em um futuro. Com o pintor morto, o filme não faz cerimônia em acabar de forma brusca, seca, quase apressada, como se os donos do passado e do presente, através do controle do mesmo, pudessem assassinar os possíveis futuros e guiá-los de acordo com sua vontade. 

Mas se há um único ponto de catarse em sua narrativa é a paixão que seus ex-alunos sentem por sua visão artística, em sua ação clandestina em campanha para que o protagonista consiga escrever um livro sobre a “Teoria da Visão”. Ao lado do dinheiro para comer, pagar o aluguel e comida, Strzeminski lutava para sobreviver enquanto artista. Lutava para manter o seu modo de expressão particular e não massificado. Como não poderia deixar de ser no kammerspiel, o sonho de seu protagonista é o momento antagonicamente mais belo e mais trágico do filme; a muito custo, físico e social, da turbeculose ao ostracismo, ele firma raízes profundas e come o pão que o diabo amassou, nem que para isso tenha que ter afastado boa parte do seu círculo social.

Com isso, Afterimage é a representação da imagem que precisa existir e resistir, precisa dar voz a cada indivíduo e não a todos eles, como meio expressivo. Marcante por ser o último filme do cineasta, certamente seria mais um filme de sua longa filmografia que ficaria pouco destacado, apesar da competência. O diretor tinha um fantástico domínio de cena para torná-la a mais dramática e cortante o possível, mas isso acaba afetando em seu o próprio filme, tão pragmático nos temas que aborda e da forma que aborda que o ritmo é pesado, truncado, jamais leve. Recortado em episódios, jamais em uma única situação progressiva, abrangendo etapa por etapa. AInda que caia nas armadilhas dos filmes biográficos (como a extrema reverência ao homenageado e a simplificação do conflito de uma vida), acerta em vários outros - nos olhares, no silêncio, nas composições de quadro... 

O adeus do rebelde de trás da Cortina de Ferro causou comoção entre a comunidade cinéfila e não é à toa - ao contrário de seus conterrâneos mais existenciais, psicológicos e emocionais como Roman Polanski, Krzystof Kieslowski e Andrzej Zulawski -, pois seus filmes são de extrema relevância política, explicitando o domínio dos grandes poderes sobre nossas vidas cotidianas, nossas percepções estéticas e nossa concepção de memória, história e identidade. E a imagem que fica, vinda do passado, que luta seu caminho para chegar ao futuro e desafiar nossas impressões daqui a décadas, o amor imagético de Wajda: a permanência da imagem, a sua importância nos dias de hoje, o seu potencial existencialista para criarmos nosso próprio futuro. Uma bela e digna homenagem à figura com o qual o diretor tanto se identificou, discutindo e sintetizando todos os temas que sempre trabalhou tão bem - e dessa vez, infelizmente, pela última vez. O passado, o presente e o futuro da Polônia e do Cinema Europeu guardam a imagem da figura seminal que foi Wajda para o cinema do seu país e do europeu por conseguinte, assim como a de Strzeminski. Figuras identificadas entre si que dificilmente se repetem; tornada filme - mesmo um filme longe do ideal - sua permanência celebra e eterniza carreiras revolucionárias. 

Pela última vez, Wajda falou sobre os nossos tempos usando outros tempos como referência - e não há como mensurar o tamanho da perda desse transformador e crítico empático e humanista, um dos responsáveis por reformular a forma que conhecíamos cinema europeu. O adeus de Wajda é amargo e pesado - mas esperançoso mesmo que por alguns instantes. Só resta saber quem carrega o legado futuramente, pois dificilmente encontraremos um diretor tão particular assim, capaz de difundir o questionamento complexo em sua simplicidade entre seus espectadores. Como poucos, uma figura sem igual do século XX e ainda que não tenha sido planejado que este fosse sua última obra, sua reflexão e sua angústia sobre o massacre do futuro faz todo o sentido. 

Se não há vida após a morte existirá vida após a imagem? 

Wajda e Strzeminski talvez soubessem.

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