As mulheres de Greta Gerwig têm pressa, correm como uma flecha pelo mundo. Reutilizando e ressignificando uma imagem já fixada no imaginário cinéfilo, a da personagem-título de Frances Ha (2012) em desabalada carreira pelas ruas de Nova York, Jo March faz o mesmo aqui pouco depois de sua primeira imagem de costas, imageticamente pronta para ser seguida, o que sua diretora não se furta nem demora a realizar, unindo definitivamente as imagens de Greta e sua alterego, Saoirse Ronan.
Depois de Lady Bird (2017), o lugar mais esperado a se encontrar Greta era uma enésima versão do clássico de Louise May Alcott, adaptado para o cinema por seis vezes nos últimos 100 anos. A princípio, uma escolha preguiçosa vinda de alguém tão jovem e em franco reconhecimento de sua capacidade autoral, Greta tinha em mãos o desafio de provar a necessidade de um novo olhar sobre as mulherezinhas da família March, assolada pelos percalços sociais em promover o bem-estar de suas integrantes por meio da arte milenar do casamento por conveniência.
Com as lentes de Yorick le Saux (de O Estranho que nós Amamos) a reproduzir em luz e essência o sentimento de amplificada inadequação pelo qual suas personagens vivem em constante verbalização, que tanto exploram esses conceitos através da escolha perfeita de planos abertos a demarcar os horizontes possíveis das mesmas sem apresentá-las necessariamente a amplitude dessas mesmas escolhas; tudo em Adoráveis Mulheres (Little Women, 2019) é propositalmente ambíguo em suas imagens, sugerindo liberdade e fornecendo cerceamento. Janelas, cercas, espaços delimitados em detrimento à ânsia romântica que se avizinha em meio às necessidades práticas.
Num mundo em que os homens estão à espreita a qual as mulheres são comumente designadas pelo cinema, em compasso de espera, em posição subalterna de decisões e posicionamento narrativo, uma nova versão desse romance pelas mãos de uma mulher que tem uma solidificada relação de modernidade ante o feminismo é um manifesto político por si só, e Greta nem disfarça na hora de criar seu desenho de acesso e conexão à obra, problematizando as relações arcaicas no qual suas protagonistas são reféns e dando uma oportunidade de serem todas elas (e não apenas Jo, a escritora) autoras de seus destinos.
Congraçando essas características já imbuídas nas intenções originais da obra com o olhar crítico e irônico moderno da própria obra de Greta, Adoráveis Mulheres reflete também o nosso tempo ao se permitir também observar o lugar milenar destinado às mulheres dentro da arte seja no segmento que for, chegando a criticar abertamente o machismo vigente até hoje dentro do cinema, inclusive. Com uma sequência próxima ao final que alfineta até a política de tratamento dado aos autores na relação com suas obras, Greta vai além de demonstrar evolução prática em sua nova área de atuação, avançando em braçadas ao seu trabalho anterior, mas também se apropriar das imagens produzidas por ela para designar múltiplos olhares significativos pra cada plano.
Com um elenco coeso trabalhando em uníssono para conseguir um resultado de impressionante qualidade (Chris Cooper, Meryl Streep, Laura Dern não ficam nada atrás do belíssimo quarteto protagonista, com todo o imenso número de personagem desenvolvidos a realçar suas tridimensionalidades), Greta age como se a invadir uma roda de debates dominada há muito tempo pelo mesmo grupo de pessoas que trocam as experiências entre si sem dividi-las, apenas para deixar claro que não apenas vai lutar pra estar nesse mesmo posto, como provavelmente já nocauteou as dúvidas a respeito de seu valor, exatamente como as irmãs March fazem há tantos anos.
Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio
"Com as lentes de Yorick le Saux (de O Estranho que nós Amamos)"
O diretor de fotografia de O Estranho que nós Amamos é Philippe Le Sourd.