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Críticas

Cineplayers

O cachorro do Godard.

4,0

A ideia de Godard de aproveitar o recurso do 3D como forma de expansão de seus experimentos com o cinema apareceu tímida em 3x3D (idem, 2013), mas ali não atingiu seu potencial máximo, já que o diretor teve de dividir o projeto com outros dois cineastas em um trabalho de conclusão coletiva. Adeus à Linguagem (Adieu au Langage, 2014) surge agora como uma continuidade a esse foco de se interiorizar cada vez mais como artista, a ponto de chegar a um nível praticamente impossível de acompanhar.

O próprio título já denuncia o caráter subversivo do filme. É um literal adeus não somente à linguagem cinematográfica, como também à sua forma, consistência, textura e conteúdo. Há décadas que Godard prega a morte lenta que vem consumindo o cinema enquanto arte, usando suas experiências imagéticas como uma forma de protesto a tudo o que contribui para esse lento e sutil assassinato. Aqui ele parece finalmente ter se conformado com o inevitável e apenas brinca com os restos mortais, fragmentos aleatórios que ganham alguma ressonância nas frases de revolta política, pregação filosófica, denúncias sociais e reminiscências históricas – tudo englobado pelo plot do casal que luta contra os desgastes e os ruídos de sua comunicação. Ele continua questionador, o problema é que as perguntas ainda são as mesmas.

Tudo em Adeus à Linguagem contribui para um efeito de desconforto no espectador. O 3D é intencionalmente incômodo, as cores alteram entre a saturação absoluta e o gritante, a sonoplastia é destoante e agressiva, a trilha sonora não condiz com a imagem, os elementos cenográficos que saltam aos olhos devido ao efeito 3D são completamente aleatórios e sem propósito, e as cenas são um remendo grotesco de imagens amorfas, de arquivo, digitais, em película. Nesse meio caótico ele grita por atenção, e questiona principalmente o olhar do público que já nasce corrompido, e por conta disso impede a plena absorção do conteúdo passado pelo artista seja em um livro, um quadro ou uma tela de cinema. Para Godard, o homem moderno já tem seu olhar contaminado por um conjunto de fatores que engloba desde política até sexo, e isso interfere diretamente em seu contato direto com a arte. Por isso a opção por uma completa abstração visual e sonora, uma total anti-narrativa que impede a formação da diegese – nesse meio é impossível que qualquer fator externo seja relevante o suficiente para alterar o impacto intencionado pelo artista sobre seu receptor.

Godard continua avançando na expansão das possibilidades da imagem, e isso merece o devido reconhecimento, mas chegou num ponto em que nada mais importa além da reafirmação pedante e birrenta de suas ideologias de sempre. Se em meio a tudo ainda se salvam algumas sacadas (como nas cenas em que o 3D desmancha no mesmo quadro duas ações ocorrendo simultaneamente em lados opostos do ambiente), em geral sobra a sensação de um belo nada construído a partir de um teorema de caos que se vende do contra apenas por ser. Não há mais um discurso político vigoroso, bem temperado e relevante de um Weekend à Francesa (Week End, 1967), ou sequer restou o entusiasmo com o cinema visto em Paixão (Passion, 1982), por exemplo. Em entrevista ao jornal O Globo, a atriz Heloise Godet inclusive brincou com tudo isso ao responder sobre a razão de tantas cenas de nudez: “Como tínhamos longas falas sobre política, literatura e filosofia, ele (Godard) precisava de um recurso que deixasse o espectador acordado, sem se dispersar.” E haja nudez para manter o espectador interessado no filme conduzido pelo cachorro do diretor que, segundo Godard, detém o verdadeiro olhar puro sobre a natureza e suas metáforas. Roxy, a estrela canina de Adeus à Linguagem, parece ser o único no universo a compreender não somente a natureza, como também seu dono. Se isso é uma vantagem ou não, já não sei dizer.

Comentários (12)

Polastri | quarta-feira, 05 de Agosto de 2015 - 19:50

Ainda acho bastante interessante, tanto esse quanto Filme Socialismo. Óbvio que é bem pouco palatavel esse formato de filme-ensaio saturado de referencias, mas ainda assim é cinema criativo, que tenta problematizar o mundo (especialmente europa do século vinte e um), e mais que isso problematizar a produção e consumo de imagens. Particularmente prefiro esse cinema experimental "demais" do que um cinema auto-referente e acomodado que ele poderia estar fazendo e certamente lhe renderia muito mais louros do público e crítica.

Nilmar Souza | sexta-feira, 14 de Agosto de 2015 - 00:31

Vi o filme e ... Godard ainda tá no seu cubículo.

Polastri | sábado, 22 de Abril de 2017 - 22:05

Revi esses dias e achei bem melhor. Acho que esse parágrafo do Sérgio Alpendre sobre Godard em geral descreve muito bem esse em específico:

"Muito da apreciação entusiasmada ou da rejeição a Godard esbarra na falsidade. Os que endeusam qualquer filme dele por vezes o fazem por intimidação (a erudição e a eloquência godardianas inibem questionamentos). E os que rejeitam sem entender o fazem por despeito (“como ele ousa ser assim, tão hermético?”). Isso acontece porque Godard normalmente fala primeiro à razão, e só depois à paixão. A partir de Le Gai Savoir (1968), ou talvez um pouco antes, seu cinema deixa de paparicar os sentidos cinéfilos para exigir muito mais da massa cinzenta do espectador, passando pela fase Dziga Vertov, de discussão política direta; pela fase do video, com pérolas fascinantes e até hoje pouco vistas longe do âmbito de pesquisadores, dentro ou fora da Academia; e por um retorno ao cinema, digamos, convencional nos anos 1980. (continua)"

Polastri | sábado, 22 de Abril de 2017 - 22:05

"(continuação) A partir de Puissance de la Parole (1988), assinado por Edgar Poe, Charles Baudelaire, James Cain, Jean-Luc Godard, Haroun Tazieff, Voies du ciel, é o projeto Histoire(s) du Cinéma (1988-1998) que impera sobre sua carreira e seus filmes passam a ter maior (JLG por JLG, A Origem do Século XXI, Filme Socialismo) ou menor (Infelizmente Para Mim, Elogio ao Amor) parentesco com esse grande monumento ao cinema e à sua errática história, e portanto tornam-se ainda mais hostis aos neófitos. Dizendo de outra forma, não se gosta de Godard impunemente. É necessário esforço, paciência, concentração, insistência. É necessário rever e rever Godard. Sempre."

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