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Críticas

Cineplayers

Entre o pequeno e o grande, um cinema do imenso.

8,5

Para muitos a sutileza é uma dádiva. No cinema de hoje não há muito mais espaço para filmes “grandes” demais, aquelas peças dramáticas (ou melodramáticas) que envolvem o público em uma trama mirabolante, recheada de reviravoltas e revelações, acompanhadas de música apoteótica e performances “maiores”. De certo modo, o grosso do cinema tido como arte feito no mundo é o cinema pequeno e sutil, a dádiva de uma linguagem mínima e de efeito. Há de se dar valor a tal fato, mas é impossível tê-lo como verdade absoluta, pois se no cinema de hoje o grandioso não tivesse lugar, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar estaria ultrapassado. E se tem uma coisa que Abraços Partidos prova, desde seu primeiríssimo instante, é que Almodóvar pode parecer tão novo quanto o cinema pequeno, ainda que ele precise ser e que se afirme como gigante.

Abraços Partidos afirma o tempo todo que o mínimo necessita ser substituído pelo máximo, que a defesa da câmera pela estética da linguagem se sobrepõe às necessidades da história em ser fluente. É possível afirmar que o filme é melhor justamente por ser desregulado. Ou melhor, ele se faz mais forte por ser muitos filmes dentro de um e não somente um filme único. E dentro desses filmes, Almodóvar faz muitos cinemas que se aliam ao seu. Vemos ainda as cores que berram, a música é praticamente um diálogo, variando entre a orquestração sirkiana de Alberto Iglesias e a melancolia sem fim de um blues de Cat Power que canta um ser que é dois (como será o protagonista, no futuro), o mundo perde a face de mundo e continua se tornando universo particular dos personagens que o diretor cria. Tudo está lá, só que aqui de um jeito diferente, mais em função do cinema como um todo que somente do cinema de Almodóvar.

O filme conta a história de um homem que muda de nome depois de um acidente terrível que o deixou cego. Antes um realizador, agora ele somente escreve roteiros de sucesso por encomenda. Antes Mateo Blanco, agora Harry Caine. Quando um fantasma do passado volta para assombrar Caine, a história de antes vem à tona (por alguns pontos de vista diferentes, dando ao filme uma seqüência de clímax de um mesmo fato) e ela em si já se torna um filme. Dentro dessa história está se fazendo um filme (claramente Mulheres À Beira de um Ataque de Nervos, que Almodóvar fez há mais de 20 anos atrás) e sobre este filme se faz um making of, que acaba se tornando um projeto investigativo, que posteriormente vira um documentário, dando conta das verdades finais sobre a trama completa. Abraços Partidos não se cansa de se desdobrar em muitos, mas não existe em cena uma preocupação com a lógica dessas mudanças. É como se o mundo tivesse que seguir a fluência projetada na tela para compreender o cinema. E o milagre é que isso acontece.

A palavra milagre pode ser colocada principalmente se for relacionada ao magnetismo que Penélope Cruz impõe em cena e pelo modo que a câmera estabelece essa relação com a atriz. O primeiro plano do filme é visto a partir do olhar de uma câmera enquadrando uma figurante, a fim de marcar o local onde a personagem de Penélope Cruz estará focada. Quando Cruz entra em cena, é ouvida, sentida, palpitada a relação de amor que a câmera irá ter com ela. E também a relação obsessiva que se dará dali em diante, que resultará na desgraça de todos envolvidos. Se Cruz enquadrada é o milagre imagético, o efeito de tal ato é perturbador ao extremo, pois irá revelar o mal incutido nos quatro personagens que compreendem a órbita da personagem / atriz. E como todo elemento catalisador de problemas, tal personagem precisa perder sua realização cinematográfica para que as explosões cessem.

É como se o cinema fosse resumido na beleza, mas ela mesma ser a desgraça do universo diegético do filme (e sendo um filme de Almodóvar, desgraça muito maior). O filme estabelece por este fato um paralelo bastante próximo do que ocorre em Morte em Veneza, de Visconti, onde a obsessão pela concretização do belo é a tragédia final do personagem principal. A morte da imagem é a morte física da visão, para Mateo, que ele transforma no fim de sua própria existência como ela foi um dia. Na tentativa de ser grandioso, como os dois corpos encontrados por Ingrid Bergman e George Sanders em Viagem à Itália, de Rossellini, mortos um ao lado do outro pela lava consumidora de um vulcão, Mateo finda a si mesmo para dar lugar ao novo. E o novo, Harry Caine, se torna imune à tentação da imagem, mas cruelmente punido por não poder mais ser hipnotizado pela existência da personagem de Penélope Cruz, que continuará a ter vida em celulose por suas mãos, mas nunca mais para seus olhos. Por sorte, Almodóvar nos permite que o último frame da atriz seja dilatado e que a fascinação com seu cinema (e por ele, o de muitos outros) seja ainda algo novo, mesmo que não sutil. Para um filme de Almodóvar, a sutileza seria também sua perdição.

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