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Abismo de um Sonho

(Sceicco Bianco, Lo, 1952)
7,6
Média
42 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Fellini e seu sheik branco

9,0

Logo em seu segundo longa-metragem, e primeiro filme que dirigiu sozinho, o diretor italiano Federico Fellini já mostrava o panorama completo do que seria seu cinema e plantava a semente do que hoje conhecemos como estilo felliniano: Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952) é uma comédia sobre um jovem casal do interior perdido em uma Roma dividida entre a magia e a tragédia, a anarquia e a tradição, povoada pelos tipos mais bizarros e plurais, que o diretor faz questão de captar em seus ângulos e situações mais estranhos. Como pano de fundo, a vida nos bastidores de uma trupe de artistas.

Ao longo dessas 24 horas em que o filme se passa, Fellini passeia por todos os temas e cenários que lhe são mais caros, tendo como ponto central a relação de um homem e uma mulher que mal se casaram e já percebem que a vida matrimonial não é aquilo que estavam esperando. Enquanto Ivan (Leopoldo Trieste) ambiciona um emprego fixo com o tio abastado e a estabilidade na cidade grande, Wanda (Brunella Bovo) ainda sonha com as aventuras românticas que lê nas fumetti, as fotonovelas italianas. Os dois acabam se desencontrando e se perdendo pela cidade em meio ao desfile de figuras fantásticas da imaginação felliniana, que transitam por essa Roma como seres fugidos de alguma fantasia literária.

Quando Wanda vai atrás de conhecer seu astro favorito, o ator Fernando Rivoli (Alberto Sordi), que interpreta o famoso sheik branco do título original, finalmente o filme envereda pelo lado mais físico e literal dessa ideia de um mundo (e um casamento) dividido entre a realidade e a ilusão. Fellini sempre se esbaldou nos espetáculos, na magia circense, no valor da arte como escape da realidade, mas paralelamente a isso também explorou bastante os bastidores desse universo, as engrenagens sujas e amorais que se escondem por trás de tudo para permitir a ilusão de acontecer, como vemos em A Estrada da Vida (La Strada, 1954) e Ginger e Fred (idem, 1986). Aqui ele faz o mesmo através do humor quase inocente de tão caricatural, com a figura do diretor histérico, da atriz vaidosa, do galã mulherengo e das suntuosas fantasias e cenários que serviam de palco para contar histórias exóticas de piratas, odaliscas, sheiks, sultões e vizires.

O ritmo ágil do filme é determinado por uma inteligente narrativa dupla, que se também se divide em abordagens diferentes. Enquanto o núcleo de Ivan se desenha dentro de uma comédia maluca sobre os costumes da elite romana, com Leopoldo Trieste fazendo suas caras e bocas para contornar a ausência da esposa perante sua exigente família rica, o núcleo de Wanda segue pela lógica oposta da personagem sendo sugada pela sucessão de situações que fogem ao seu controle e aos poucos corrompem sua visão ingênua sobre o mundo.

Essa comédia de desencontros se vale de um dos plots mais aproveitados do cinema, sobre o marido e a esposa que sem querer se perdem pela cidade, para depois se reencontrarem já transformados em novas pessoas e com uma nova percepção sobre si mesmos e sobre o casamento, vide O Atalante (L’Atalante, 1934) e O Fundo do Coração (One From the Heart, 1982), ou mesmo os filmes de Woody Allen que se inspiram claramente em Abismo de um Sonho: Para Roma, Com Amor (To Rome with Love, 2012) e o recente Um Dia de Chuva em Nova York (A Rainy Day in New York, 2019). Fellini aproveita a história para desenhar os personagens que se contrapõem em boa parte de sua filmografia: o sonhador e o desiludido, sendo um parte do que o outro foi ou será. A cena em que Ivan se rende, já descrente de um dia reencontrar a esposa, e é consolado por duas prostitutas, sendo uma delas a mesma Giulietta Masina que retornaria em Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), reforça bem a ideia: ela afinal o compreende melhor do que ninguém, mas prefere se voltar ao espetáculo e pede a um amigo beberrão que faça um truque para cuspir labaredas de fogo vivo em plena praça deserta à noite.

Fica a reflexão sobre o matrimônio e sobre o conhecer de verdade o outro, principalmente diante das reviravoltas que a vida traz e os novos ares e novas pessoas que por vezes aparecem sem avisar. Enquanto o Sheik Branco é capaz de escapar do casamento com a mulher possessiva e ciumenta e se esconder no personagem corajoso e romântico que interpreta, resta a Ivan e Wanda descobrirem uma forma de também atuar e fragmentar a própria identidade sem o aparato da ilusão da arte, agora que a Roma mágica se desanuviou e a vida de casado e os papéis que lhe cabem finalmente os alcançaram.

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