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Críticas

Cineplayers

Obra-prima sobre aborto não mereceu o devido respeito no Oscar, mas filme é um dos melhores do ano.

9,0

O Oscar e suas incoerências. Vários filmes qualificados e, por isso, cotados como possíveis indicados na categoria de Melhor Filme Estrangeiro deste ano acabaram ficando de fora da listagem final. Longas como o suspense "O Orfanato" e a animação "Persépolis", por exemplo, já estavam em plena arrancada quando a Academia resolveu furar seus pneus. Da Romênia também vinha um forte candidato - afinal, ganhar a Palma de Ouro em Cannes gabarita qualquer filme. Trata-se do polêmico "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", dirigido por Cristian Mungiu e foco desta análise. Contudo, o Oscar também o eliminou logo na primeira peneira. O resultado da premiação nós já conhecemos: novamente a 2º Guerra Mundial e os judeus prevaleceram.
 
"4 Meses..." se passa em 1987, um dos últimos anos de uma Romênia já cansada de ser comunista. Otilia (Anamaria Marinca) e Gabita (Laura Vasiliu) dividem um quarto num dormitório estudantil - ambas são colegas de classe na universidade. Gabita está grávida e planeja abortar o feto. O grande problema é que a prática é ilícita no país. Buscando seu objetivo, Gabita contará com a ajuda de Otilia, responsável por conduzir Domnu' Bebe (Vlad Ivanov), o aborteiro, até um quarto de hotel, onde a interrupção da gravidez deve ocorrer. Assim, Gabita e Otília terão de se submeter às exigências de Bebe, marcando suas vidas para sempre.
 
Constata-se, ao terminar de ler a sinopse, que personagens fortes e impactantes são necessários para que um filme com uma temática dessa funcione. E é exatamente isso que ocorre. A forma direta e incisiva como Domnu' Bebe age e fala, bem como sua impiedosa postura diante das duas amigas são fundamentais para tornar a obra dura, seca e potencialmente rica em significado - seja este político-social ou moral. Gabita, aparentemente a protagonista, parece não assimilar direito a importância das conseqüências de tudo aquilo, em virtude, claro, da confusão psicológica (aqui, subentendida) causada tanto por uma gravidez inadequada quanto pela decisão de abortar. Dessa forma, suas resoluções desesperadoras (como na sucessão de mentiras que aos poucos são reveladas) e egoístas refletem justamente essa confusão mental da universitária - reparem como ela mantém-se passiva diante das atitudes da colega de quarto.
 
Embora de início não pareça, é Otília a verdadeira protagonista da trama. O interessante é notar que ela consegue esse feito exatamente por não ser – ao menos não como estamos acostumados. Vendo o que se passa (a exemplo do espectador) e estando pronta para ajudar a amiga em seu intento (é bom frisar que ela não sentencia a opção de Gabi pelo aborto), Otília é quem acaba fazendo tudo: faz a reserva no hotel onde o procedimento acontecerá, vai ao encontro do aborteiro, arruma dinheiro e se arrisca no mercado negro para comprar artigos (como um maço de cigarros Kent) a fim de satisfazer à amiga - destaque especial para a cena inquietante na mesa de jantar na casa do namorado de Otília. Nesse sentido, a dor moral que a personagem sente ao participar diretamente dessas ações (principalmente do aborto em si) será carregada a vida inteira, pois não há mais volta: Otília é ferrada para sempre. Nada mais simbólico do que a última frase dita por ela, seguida de um olhar no mínimo traumático. Assim, é Otília quem de fato se degrada; é Otília quem verdadeiramente aborta.
 
Para dar vida a personagens tão atraentes, só mesmo atores nivelados pela competência. Vlad Ivanov vive o frio Bebe com uma segurança incrível. Tanto nas ações previamente calculadas do personagem, quanto nos momentos de explosão, Ivanov consegue ir bem. Já a interpretação de Laura Vasiliu, distante nos momentos necessários e passando uma dor sublimada, é outra beleza. Atuar em papéis dramáticos assim não é nada fácil, pois existe a possibilidade da pieguice prevalecer, enfraquecendo o trabalho do ator. Como a obra em si não é um drama qualquer (muito em função de Mungiu, é verdade), isso felizmente não ocorre. Fechando a tríade principal, Anamaria Marinca consegue ser ainda melhor do que seus companheiros - até porque ela aparece mais vezes em cena. Bastante naturalista, a atuação inspirada da atriz é a que mais sensibiliza.
 
Cristian Mungiu, responsável pelo roteiro do filme, da mesma forma é categórico na direção. Afora sua destreza na condução dos atores, levando-os a interpretações marcantes, Mungiu consegue tomadas ímpares, plenas de sentido. As câmeras, posicionadas em vantajosos pontos, preferem focar a trama secundária à principal. A cena na qual Gabita e o aborteiro dialogam, por exemplo, o diretor opta por deixar a imagem de Otília em destaque, numa postura equilibrada, pouco usual - seria mais fácil e ordinário escolher apenas os dois "principais" da cena para centralizar as atenções da câmera. Essa pequena passagem serve para exemplificar o modo apurado como o diretor nos joga dentro de sua produção. Talvez por isso a sensação de cumplicidade entre público e história seja constante.
 
Mas o melhor mesmo é que o trabalho do cineasta consegue ser franco com o espectador, já que Mungiu simplesmente não anda pelo caminho mais óbvio. Evitando ostentações grosseiras, o cineasta é excelente na direção exatamente por não querer aparecer (no pior sentido da palavra) mais do que seu filme. Ele é direto, mas sem ser trivial. Longe de apelar para o extremismo dramático, utiliza sua história para passar algo reflexivo - aqui, ele prefere mostrar a nuca da personagem ao invés de choradeiras desnecessárias em um banheiro. Se não bastasse, há ainda espaço para uma rápida tirada de humor negro, detalhe mordaz que provavelmente não agradará a todos.
 
O longa também se destaca em sua trilha sonora. Aliás, a ausência dela. Tudo acontece silenciosamente, sem oferecer redenção alguma aos personagens. A tensão da trama, ancorada de modo preponderante nos acontecimentos noturnos, está em uma simples freada de carro, num latido de cachorro, nas seqüências de passos apressados e respirações ofegantes de Otília - algo semelhante ao recente trabalho dos Coeh, o premiado "Onde os Fracos não Têm Vez", no qual a manipulação do som é fundamental para a construção apreensiva da imagem. Vale ressaltar também a fotografia crua do filme, complementando os dolorosos atos das figuras em cena.
 
"4 Meses..." permite, ainda, múltiplas interpretações. Para os ativistas contrários ao aborto, é uma boa oportunidade de ratificar o desprezo pela prática. Para os protetores da descriminalização do ato, funciona como bandeira para exibir a situação daqueles que se submetem ao procedimento ilegalmente. Alguns críticos acusaram Mungiu de ter realizado um filme para um público mais convicto e conservador. Não sei bem se é por aí. Ocorre que o cineasta propõe uma situação pronta para ser debatida. Sua habilidade em ficar em cima do muro é bem curiosa e, talvez por isso, duvidosa: ao mesmo tempo em que emprega artifícios mostrando sua suposta posição (falou-se bastante das cenas com o feto), Mungiu passa a responsabilidade do julgamento ao público, os verdadeiros juízes do assunto proposto. Essa é, então, outra qualidade da obra: ser provocativa.
 
Segundo o diretor, "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" é apenas o primeiro filme de uma série intitulada 'Contos de Uma Era Dourada' - em alusão ao período comunista de seu país. Mesmo recebendo catorze prêmios internacionais, o longa não foi capaz de vencer a incoerência dos votantes da Academia. Mas, na verdade, isso pouco importa, visto que são freqüentes as injustiças no Oscar - a derrota de "Sangue Negro" este ano, por exemplo, foi inadmissível para muitos. Vale também parabenizar o cinema romeno, que, mesmo com todas as dificuldades estruturais, firma-se a cada novo projeto - filmes recentes como "A Morte do Senhor Lazarescu" e "A Leste de Bucareste" já haviam demonstrado qualidades.

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