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Críticas

Cineplayers

Um filme sobre as potências do tempo no cinema.

7,5

Como o seu título já sugere, 127 horas (127 hours, 2010) é um filme sobre o tempo. Mas, ao contrário do que poderíamos pensar, não apenas sobre o tempo que transcorre – as ditas 127 horas em que grande parte da história se passa. Além desse tempo cronológico, o diretor Danny Boyle constrói um filme de temporalidades múltiplas e sobrepostas: o tempo imaginário da memória e do sonho, o tempo dobrado pelas câmeras fotográficas e videográficas ou o tempo da montagem nos planos. Assim, o espectador é levado a vivenciar diversos regimes desse mesmo elemento em um pouco mais do que 90 minutos – o tempo, de fato, do filme.

127 horas é baseado na autobiografia Between a rock and a hard place,  de Aron Ralston, montanhista que ficou cerca de cinco dias (as tais 127 horas) com o antebraço preso debaixo de uma pedra. A partir do momento em que se vê nessa armadilha, Ralston (interpretado por James Franco) busca maneiras de sair dessa situação improvável, mas encontra-se sem formas de comunicação e sem material apropriado para deslocar a pedra. Resta-lhe procurar sobreviver o máximo possível racionando sua escassa quantidade de água e comida. Outro item de sobrevivência, menos óbvio, é a sua filmadora de vídeo, máquina com a qual Ralston faz depoimentos para a família e documenta a sua situação – na tentativa de manter sua sanidade mental.

O enredo do filme se desenvolve nesses cinco dias, na tentativa – que chega ao desespero – de Ralston sobreviver a qualquer custo. Nesse bloco temporal, chama a atenção as relações que o diretor filma entre o corpo do personagem e a natureza, uma espécie de comunhão entre os objetos. Uma cena sintomática dessa comunhão é a forma como Ralston desliza suas mãos sobre as rochas do Grand Canyon, um pouco antes do acidente. Há nessa relação uma harmonia incontestável, como se o personagem fosse parte daquele cenário. O tempo está em relação direta com a grandiosidade dos espaços, das rochas. Assim, temos o tempo como uma matéria bruta: nada pode impedir o seu transcorrer. Nesse sentido, podemos falar em uma temporalidade do sublime, da natureza.

A comunhão entre o corpo e os objetos transpassa uma vontade de existir além da capacidade da sobrevivência humana, vitalidade pré-humana, inorgânica, cósmica – na qual corpos e objetos se equivalem. Nesse regime de temporalidade, do corpo de Ralston preso a rocha, as imagens ganham uma textura diferenciada: bruta como a do tempo. Desejo de vida que podemos ver em cenas como as do raio de sol que bate na perna de Ralston por alguns poucos minutos a cada manhã – cada um desses poucos minutos desfrutados com um grande prazer. Nessa história, o inimigo é o tempo que transcorre e não a pedra que aprisiona.

Por isso a necessidade de Ralston em dobrar esse tempo pelas imagens, multiplicando-o com o uso de suas próteses maquínicas: filmadora e câmera fotográfica. Esse tempo, da câmera, do plano, das imagens, é possível controlar, rebobinar ou avançar e, mesmo, repetir quando necessário. Essa relação de quase dependência com os aparelhos tecnológicos não está de forma alguma em contradição com a sua comunhão com a natureza. Ao contrário, as imagens construídas reforçam a potência do desejo de viver. É preciso filmar para experenciar mais plenamente. Assim, Ralston não documenta apenas a situação pós-acidente, o pânico, as mensagens de amor para a família; mas, antes, filma também o prazer das aventuras. É o caso do feliz encontro com as duas amigas que estavam perdidas e ele conduz até uma queda em um lago, um pouco antes do acidente.

A partir dos sonhos, que aos poucos viram pesadelos e alucinações, o filme chega ao terceiro regime do tempo: o das memórias, no qual o tempo é reinventado. Preso aquela situação, Ralston começa a ser atormentado por suas lembranças e desejos imaginários. Não existe mais necessariamente antes ou depois, passado ou futuro, apenas um curto-circuito de sensações. Assim, as lembranças das primeiras viagens para escalar misturam-se com as da ex-namorada ou mesmo com a lembrança do que nunca existiu – em alguns momentos, o personagem se imagina na festa das duas amigas que ele levou ao lago, na qual de fato ele nunca esteve. Esse é o tempo do eterno retorno das imagens e dos afetos. Não existe de fato separação entre o que é lembrança e o que é imaginação. Assim, o desejo de libertar-se pelo sonho de uma grande enxurrada que movia a pedra torna-se um pesadelo quando a memória afetiva se sobrepõe com uma negativa da ajuda da ex-namorada. Esse regime do tempo irreal, em círculos, avança sobre Ralston a medida que o tempo transcorre, que sua sobrevida se esvai pelo cansaço, falta de água e de comida. É essa espiral do desespero que leva o personagem as últimas consequências e, portanto, a uma solução – na cena mais forte do filme. Enquanto violentamente o personagem resolve o problema, ele também alucina ver a si mesmo criança assistindo a situação. Visceralidade e delírio, o tempo de vida que se esgota e o tempo dos afetos que consomem, estão indistinguíveis.

Há, ainda, o regime do tempo na montagem de alguns blocos de imagens. Os créditos iniciais já aparecem em uma espécie de videoclipe sobre a vida agitada da multidão: em uma tela tripartida vê-se pessoas torcendo, correndo, andando, nadando. A sensação de movimento constante só aumenta pela velocidade do planos (rápidos como os da televisão) e pela intensidade da música. Esse tipo de montagem é retomado algumas vezes por Danny Boyle durante o filme, principalmente com o objetivo de intensificar as sensações: nos momentos de desespero, de alucinação, das lembranças confusas da infância e de superação dos limites.

Esse regime do tempo contrasta bastante com o regime do tempo bruto como a rocha. Na lógica da imagem-vídeo com a qual se constroem, são planos de puro tempo: sem espaço. A imagem de vídeo, da televisão, está em constante formação, dentro do plano. E, por isso, só existe no seu decorrer, no tempo. É preciso desestabilizar as imagens, torná-las rápidas e partidas, para que o tempo pulse por si mesmo. É nessa escolha de montagem que sente-se de forma mais presente a mão um pouco pesada do diretor. De certa forma, é como se Danny Boyle não acreditasse na força das próprias imagens e da história e precisasse dos efeitos de pós-produção para reforçar o seu filme. 

Por fim, há a tentativa de reconciliar todos estes regimes. A superação do problema (e do tempo) reúne memórias e projeções, personagens reais e ficcionais, passado e presente. Quando Aron Ralston real depara-se com Aron Ralston personagem, o tempo fílmico encontra o tempo da vida. Só então, é possível parar a contagem da horas.

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