Espectros da arte, velhice, desejo e glória.
Primeiras impressões do filme “Pacarrete”
Cláudio Cardoso de Paiva
O filme Pacarrete realiza uma vigorosa alegoria das histórias do interior (da alma e da cidade). Suas lentes abrem janelas para uma mirada profunda no modo de ser das criaturas humanas. Todavia, sua grande virtude consiste numa criteriosa contemplação da experiência da velhice: seus sonhos, perdas e a potência da sua imaginação criadora. Tudo se passa no vilarejo de Russas, Nordeste do Brasil, Ceará, início do século XX, mas poderia se passar em qualquer cidadela do mundo, pois faz um mergulho intimista nas vastas camadas do ser, no crepúsculo da vida.
Pacarrete (do francês pâquerette, que significa Margarida,), interpretada por Marcela Cartaxo, é uma hilariante professora de balé, ranzinza, desbocada e neurótica. Ela afugenta aos berros e palavrões os transeuntes da “sua calçada”. Vinga-se de um bêbado mijão que suja a frente da casa, jogando um pinico de xixi no sujeito. Tange as crianças que lhe aperreiam dia e noite tocando a campainha. Cria uma couraça imaginária diante da vida, imaginando-se uma dançarina francesa. É a “louca da casa”, a doida da rua. E no sentido mais elevado do termo, é a alma livre, altiva e verdadeira da cidade.
Enlouquece as duas mulheres com quem convive, a paciente irmã Chiquinha (Zezita Mattos) e a resignada empregada Maria (Soia Lira), mas ali a comunicação é formidável, pois resgata o universo social e político das mulheres no começo do século passado, numa província do interior do Brasil. Um flagrante memorial da vida privada nordestina. Memorial dos velhos, suas rotinas sentimentais, suas rusgas e laços afetivos.
Trata-se da encenação fantástica das neuras, discussões, pilhérias, brigas, afetos e desafetos no cotidiano das solteironas. Relembro uma tirana modinha acerca dos xingamentos entre as rivais: “Bota pó, vitalina, tira pó, moça velha não sai mais do caritó”. A idosa bailarina deseja desesperadamente “ajudar a cidade”, fazendo uma apresentação de balé, mas a festa é sertaneja e a preferência popular é o forró. Então, por isso quase mata a funcionária da prefeitura que rejeita a sua participação. Mas, como ela mesma diz: “Pacarrete é forte como um mandacaru”.
Ela nutre uma paixão platônica pelo simpático Miguel. Trocam presentes. Ela o quer e até se oferece para passar uns dias de aluguel na casa dela, mas ele é casado e fiel à mulher que viajou a negócios. A amizade, contudo, é um elo forte e Miguel a apoia na hora do baque. Há velada sensualidade na relação, mas o respeito e a solidariedade expressam as marcas sublimes no cinema do autor, Allan Deberton.
Há os altos e baixos na vida e na sua representação, claro. A cena do encontro e diálogo com o cachorro (He Man) é impagável. A passagem lembra o diálogo entre personagem Meursault, do livro “O Estrangeiro” (Albert Camus), e o cachorro: tudo tão triste, insólito, desolador. Num flash, o filme traduz o instante eterno de solidão da criatura humana diante do nada. Mas, a cena é genial pelo misto de emoções que dali se desenrolam. Primeiramente, um momento de reserva emocional: sentimento de raiva, vergonha e revolta pela ingratidão e esquecimento do mundo. O cão não teria o direito de assistir ao seu fracasso. Em seguida, uma imediata identificação e súbito reconhecimento da sua condição na vida de cachorro. E enfim, o enlace afetivo e a conquista do animal, que, levado para casa, se torna fiel companheiro.
Pacarrete é um sintoma da colonização francesa no Brasil do século passado. Ela fala, lê, canta, se veste, dança, sonha, vive e “morre”, em francês. Uma ideia fora do lugar, talvez. Mas aqui não é o caso. Cultivada, erudita e de lembranças refinadas, Pacarrete, toca piano, tem rara educação musical, audiovisual e corporal que lhe transporta liricamente para uma outra dimensão feliz da existência. A sua mitologia pessoal, acústica, musical, a salva do inferno dos forrós de plásticos que tiram o sono da cidade.
O trabalho se nutre dos depoimentos e testemunhos dos moradores de Russas sobre a inesquecível professora de balé Maria Araújo Lima, conhecida como Pacarrete, a “doida da cidade”. Todavia, a personagem se agiganta, primeiramente pela interpretação de Marcélia Cartaxo, confirmando o seu talento, desde a maravilhosa aparição, como a original Macabéa, no filme “A hora da Estrela”, adaptação do romance de Clarice Lispector (1977) para o cinema (1985), pela fabulosa diretora Suzana Amaral (que partiu ontem, quinta-feira, 25 de junho de 2020).
A poética industrial-tecnológica do cinema tem propiciado viagens extraordinárias. Mas, o seu progresso não teria serventia sem o trabalho sensível e inteligente dos artistas. Logo, convém antecipar os aplausos ao diretor Allan Deberton, às atrizes Marcélia Cartaxo, Zezita Matos, Soia Lira e ao ator João Miguel. Cada um, à sua maneira, confere astúcia, humor, doçura, serenidade e encantamento à narrativa.
O êxito da obra deve muito ao irretocável trabalho artístico dos profissionais: fotografia (Beto Martins), direção de arte (Rodrigo Frota), figurino (Chris Garrido), Maquiagem (Tayce Vale), coreografia (Wilemara Barros), constroem o universo audiovisual, em que se instala uma personagem que ficará no imaginário do cinema.
As sequências de Pacarrete no quarto pouco iluminado, o pálido reflexo de sua face maquiada, máscara bizarra no espelho embaçado, seus gestos, caras e bocas refletidos, no desejo obsessivo de bailar no palco, teatralizam com vigor o pathos da personagem. A lembrança do filme “Crepúsculo dos deuses” (Billy Wilder) parece pertinente: a insólita narrativa de uma atriz veterana (Glória Swanson), obcecada em voltar ao cinema antes da morte e que gradativamente vai saindo de si e parte para outra esfera existencial. Pretexto nobre para uma reflexão sobre o lugar dos velhos no mundo do trabalho e na indústria do cinema, quando impera o culto da eterna juventude.
E há as pausas, os silêncios, os instantes profundos de dor, desalento, luto e melancolia, que a câmera captura com esmero, propiciando uma leitura imersiva, como as histórias narradas apenas nas páginas da literatura mais subjetiva.
A narrativa possui um mérito que faz dele um filme raro: não há nada de rituais nem cerimônias fúnebres, como se poderia esperar num filme que trata também do ocaso e a finitude do ser humano. Há elipse, respeito e delicadeza no tocante à morte. Há a materialização visível do sentimento de ausência no semblante sofrido e atitude consternada de Pacarrete (em relação à Chiquinha).
Há – certamente - ressonâncias cinematográficas que afetam a percepção do espectador. O enfrentamento das situações-limite, dos acontecimentos extremos, por vezes, é visualizado na tela como “golpe de sorte”, e outras vezes por obra da genialidade do artista. Em “Dançando no Escuro” (Lars Von Triers), a personagem de Björk (Selma), canta e dança compulsivamente. Luta contra o mal, o medo, a cegueira e a morte, assim “supera” as adversidades e se arremessa em outra dimensão, puro êxtase, arrebatamento completo. De modo similar, assim é a cena final de Pacarrete: uma apoteose, queda para o alto, talvez um nível de transcendência possível apenas no cinema. A lei do desejo ali é mais forte: a dor, o desencanto, a tristeza se transmutam na expressão sensível da glória.
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