Uma franquia trinta anos longe das telonas. Um diretor de 70 anos de idade, que não assinava um longa-metragem live action (com atores reais) há 17 anos. Um personagem principal interpretado por outro ator, relativamente desconhecido, sem o mesmo carisma do original. Uma drástica mudança de local das filmagens, que atrapalhou demais o cronograma do filme, cuja produção demorou mais de dois anos para ser concluída.
Tinha tudo para dar errado e ser um fracasso, mas a verdade é que esse quarto filme da franquia Mad Max nos deixa de boca aberta, e consegue agradar o público dos blockbusters sem deixar de estampar a forte visão autoral de seu criador, que acerta do começo ao fim em cenas de ação de cair o queixo e na rica composição de seus personagens. Miller não tem medo de correr riscos, operando sempre no limite do excesso para renovar-se e quebrar paradigmas um atrás do outro, sempre de maneira surpreendente.
Esse filme se sustenta sozinho. Não há a menor necessidade de ter visto os filmes anteriores para assistir este. Os princípios da trilogia original retornam (o carro V8 Interceptor utilizado por "Mad" Max Rockatansky nos filmes anteriores aparece logo de cara, para delírio dos fãs), mas ganham elementos e detalhes novos. Certamente quem nunca viu algum filme da franquia vai se apaixonar pelo universo pós-apocalítico criado por George Miller e ficará curioso em assistir os três filmes anteriores o mais rapidamente possível. O primeiro deles foi feito com baixíssimo orçamento em 1979 – parcos 400 mil dólares – mas rendeu de bilheteria cerca de US$ 100 milhões.
Um Mel Gibson de apenas 23 anos de idade interpretava Max Rockatansky, policial rodoviário e pai de família, que perde tudo que tinha pouco antes do mundo ir para o ralo, na transição entre o primeiro e o segundo filme. O sucesso pavimentou o caminho para "Mad Max 2: A Caçada Continua" (considerado por muitos o melhor da série) e "Além da Cúpula do Trovão" (que muitos fãs não gostam por dar bem menos destaque às perseguições com veículos, e que trazia Tina Turner, no auge do sucesso, como coadjuvante de luxo).
Aqui a trama se passa quase 50 anos depois dos eventos do terceiro filme. Miller procura nos mostrar como o totalitarismo e o fanatismo religioso caminham juntos – e como a água, o bem mais cobiçado desse mundo futurista, vira instrumento de chantagem política e espiritual. Somos apresentados a uma espécie de povoado, reunido num local chamado Cidadela, situado no meio de um deserto imenso e inóspito, cuja sociedade é comandada por um ditador deformado, Immortan Joe (vivido pelo ator Hugh Keays-Byrne, que fez o vilão Toecutter no primeiro Mad Max), tratado quase como um semideus, que escraviza grande parte de seu povo. Seu “exército” de fanáticos é formado pelos chamados “Garotos da Guerra”, fiéis enlouquecidos que sonham em morrer para viver no Valhala eterno - o paraíso prometido pelo líder a seus súditos, caso obtenham o que se pode chamar de “morte gloriosa”. Numa composição de personagem que mistura ternura, violência e fé cega em acreditar no pós-vida, Nicholas Hoult é Nux, um desses fanáticos, que como seus colegas vive preso a tubos de sangue, realizando transfusões sanguíneas frequentes entre si.
No início do filme, Max (Tom Hardy) é capturado para servir como bolsa de sangue “ambulante”, sempre disponível para a conveniência de seus captores – e ele é preso à parte dianteira de um dos veículos que deve atravessar o deserto, comboiando o caminhão-pipa dirigido pela Imperatriz Furiosa (Charlize Theron) numa missão de busca de combustível. Numa atitude desesperada e audaciosa (e com Max a ajudando para poder escapar), ela resolve trair seu comandante quando, no meio do caminho, escapa do comboio, com a intenção de fugir em direção à sua terra natal, o “Vale Verde”, juntamente com as mulheres que a acompanham no caminhão, todas elas “jovens esposas” procriadoras do líder messiânico. E é aí que começa a longa perseguição que se desenrola pelo restante do filme.
A substituição de Mel Gibson pelo britânico Tom Hardy levanta algumas discussões e questionamentos inevitáveis. Assistindo o filme, talvez seja mesmo improvável imaginar que Gibson - atualmente com 59 anos de idade - fosse capaz de fazer a maior parte das cenas de ação que povoam a produção do princípio ao fim. A verdade é que Hardy se sai muito bem, apesar de não ter o mesmo carisma de Gibson. Muitos também acharão que o fato de Charlize ter se destacado tanto como Furiosa é menos mérito dela e mais demérito da performance de Hardy, mas essa é uma análise que claramente menospreza o absurdo talento dela, mesmo para filmes de ação, como já havia ocorrido antes, por exemplo, em “Branca de Neve e o Caçador”.
Max Rockatansky continua sendo um personagem de poucas palavras e olhos loucos, monossilábico e introspectivo, assombrado pelos fantasmas da família que não conseguiu salvar, o que o deixa ainda mais frágil e assustado. Mas apesar de dar nome ao filme, ele não é páreo para a verdadeira protagonista – a Imperatriz Furiosa de Charlize Theron, personagem cativante e de profundidade riquíssima. Com uma atuação memorável, é ela quem turbina o andar do filme, e é sempre sob o ponto de vista dela que acompanhamos a estória. Atuando nas filmagens sempre com um emplastro preto na mão - sua personagem não tem um dos braços - ela não é uma mulher masculinizada, mas sim com um propósito determinado, capaz de ir a extremos para impedir que outras tenham o mesmo destino de escravidão e submissão que ela teve. Furiosa representa a esperança de um mundo melhor em meio ao caos, e é comovente e emocionante ver como os acontecimentos do filme fazem com que suas esperanças vão se esvaindo, impactadas pela brutal realidade com que se depara em sua fuga desesperada.
Aqui cabe uma observação interessante: repare como a fuga de Furiosa com suas colegas “amas de leite” a bordo de um solitário caminhão pelo deserto lembra muito as frágeis diligências de muitos faroestes do cinema nas décadas de 1940 e 1950, que em muitas vezes transportavam mulheres (algumas vezes também grávidas) em perigosas e arriscadas incursões solitárias em pleno Velho Oeste - como o clássico de 1939, “No Tempo das Diligências”.
Todos esses personagens são muito bem desenvolvidos, e estão inseridos numa trama que até poderia ser resumida como “um grande filme de perseguição”, mas Mad Max 4 é muito mais que isso. Sim, o filme tem poucos diálogos e privilegia as cenas de ação, mas aqui a ação não é apenas um complemento visual, mas sim a própria linguagem com que a estória estabelece sua comunicação conosco. Esqueça os cortes rápidos e irritantes dos filmes de Michael Bay ou a overdose de retoques digitais das produções de George Lucas: o que temos em tela são pessoas de verdade, guiando veículos de verdade. Somente 20% das cenas de ação tiveram algum auxílio de computação gráfica. A grande parte das capotagens, colisões, tiroteios e explosões foram rodadas diretamente no set de filmagem – o que tornou sem dúvida o resultado final ainda mais impressionante. Dublês e especialistas que fizeram aberturas recentes de Jogos Olímpicos foram usados para as cenas perigosas, tudo em nome do realismo absoluto. Ou seja: todos os veículos, a sujeira desoladora do deserto, as explosões gigantescas, as performances dos atores, são reais. O máximo que as cenas de ação receberam foram retoques técnicos - uma espécie de “tratamento gráfico” - para deixá-las ainda mais ostensivas.
Além disso, a cinematografia do filme é simplesmente maravilhosa. O tom alaranjado permeia todo o longa e ajuda a evidenciar o calor do deserto e o mundo devastado que nos é apresentado por Miller, que faz enquadramentos que valorizam os horizontes, fazendo de seus cenários grandiosas arenas de combate, com uma clareza na coreografia das perseguições automobilísticas impressionante. Sem dúvida, esse é um dos poucos filmes que justifica cada centavo do ingresso mais caro do IMAX, bem como a aplicação do 3D (inclusive com objetos lançados em direção ao público), que ficou simplesmente soberba, deixando o espectador extasiado em vários momentos. A experiência sensorial propiciada pela sinfonia de ação criada por Miller só funciona plenamente quando as imagens e o som, concebidos para operarem no limite do excesso, explodem numa tela gigante de cinema.
A direção de arte é outro capítulo à parte: o design dos veículos é sensacional, um zumbi toca guitarra em frente a uma parede de amplificadores sobre rodas, a maquiagem, figurino e caracterização do visual punk pós-apocalíptico dos personagens ficou totalmente adequado à estória. As cerejas no bolo são o som e a trilha sonora de Tom Holkenborg, que em conjunto com o visual do filme compõem um quadro de êxtase irresistível.
A produção do longa – que custou 150 milhões de dólares - foi bastante conturbada. As filmagens tiveram que ser interrompidas por meses, à espera de condições climáticas perfeitas no deserto da Austrália, que após longa espera nunca se confirmaram. Numa mudança de logística complexa e cara - que quase custou a realização do filme - decidiu-se por mudar os sets para o deserto da Namíbia, em filmagens que duraram exaustivos sete meses, praticamente “no meio do nada”. A esposa do diretor - Margaret Ann Sikel - levou dois anos trabalhando cerca de dez horas por dia para montar o filme a partir de 6 mil horas de material bruto. E a insistência dos produtores por encontrar condições ideais de filmagem se mostrou acertada para a correta composição do universo pós-apocalíptico desejado por Miller: a falta de vegetação no filme é tão grande que, numa das cenas, uma árvore seca aparece e um dos personagens nem sabe do que aquilo se trata.
Recentemente, o filme recebeu duas levas de aplausos e uma forte ovação ao final da primeira sessão de exibição no festival de Cannes. Mad Max 4 é uma aventura complexa, original, ousada e incansável, de ação espetacular, com as duas horas de perseguições de carros e caminhões mais insanas dos últimos anos no cinema. Uma catarse sem fim, que se reinventa sempre e consegue fazer isso de maneira atordoante. O mundo acabou, tudo está em desordem e o que resta é pisar no acelerador – e o melhor que podemos fazer é se segurar na poltrona do cinema – ou de casa – e embarcar nessa viagem alucinante e psicodélica.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário