Poderíamos delirar quanto à cena das origens e imaginar que foi necessário ao homem primitivo domar o ritmo para confeccionar artefatos e produzir instrumentos; que enquanto ainda produzia sons descompassados e disformes, era impossível, por exemplo, afinar a ponta de uma lança. Pela percussão rítmica e pelo jogo do marcado e do não marcado a humanidade avançou rumo ao mundo oculto da linguagem, da matemática (1, 2, 3... 1, 2, 3...), da técnica e do mito, “aquilo que, escondido na realidade, só pode vir à consciência humana através de um código, que simultaneamente serve para cifrar esta realidade e para decifrá-la” ("A Escuta", Roland Barthes).
Brasil S.A. (2014, Marcelo Pedroso), 2º concorrente do Festival de Brasília 2014, começa com uma imagem do mar, viagem com destino a terra brasilis. Logo aportamos e a associação da montagem revela que estávamos a bordo de um navio chinês. Neo-colonização. Tratores, empilhadeiras e colheitadeiras desembarcam no porto e desconfiamos por um instante descarregarem artigos xinglings diversos, para logo descobrirmos numa espécie de gag visual - como na piada da senhorinha que carrega sacos de areia numa mobilete na fronteira Brasil-Paraguai - que essas máquinas e equipamentos são já os produtos.
Um homem rema num manguezal, ecossistema costeiro de passagem entre os ambientes terrestre e marinho, rico em nutrientes por possuir grande quantidade de matéria orgânica em decomposição. Em trânsito. Uma bandeira verde e amarela na cidade com um círculo subtraído no meio faz sombra neste homem remando no manguezal. Ele continua sua viagem mangue adentro até uma linha de concreto em leve ângulo recortar a parte superior da tela: invasão do som atroz de britadeiras. Noutro ponto, homens na sua hora de descanso do trabalho num canavial escutam um forró num rádio a pilha. A melodia do radinho é substituída pelo ritmo mecânico da chegada escoltada dos equipamentos agrícolas que havíamos visto no início do filme. Barulho histérico do funcionamento das máquinas.
Equipar: a recorrente abstração dos filmes do diretor pernambucano Marcelo Pedroso tornam sempre arriscados comentários sociais sobre o que vemos – ou o quanto o filme adere ou descola daquilo que apresenta - pois deparamo-nos sempre com a possibilidade de revirarmos não mais que apenas os nossos próprios preconceitos. Brasil S.A. é o inventário de uma sociedade com o quadro (síntese do recorte cinematográfico) cindido. Diversas forças em campo; o filme não necessariamente opõem-nas, mas distribui perguntas secretas e pungentes: que forças são essas? A quem elas servem e representam? E como podemos domá-las e subvertê-las? (Poderíamos resumir estas questões todas a uma só: o que fazer?).
Podemos perceber com mais distância que o mutismo e atuação um pouco atônita dos personagens (agentes, atuantes) de Brasil S.A. (2014, Marcelo Pedroso), seria por esses atores habitarem um espaço (cinematográfico e alegórico) que antecede a linguagem. Situação que concede ao enunciado(r) do filme uma posição de “não lugar”, porque se existe uma oposição entre os habitantes dos planos de Brasil S.A. – algo que os tornem irreconciliáveis - não é perceptível onde cruza essa linha de divisão. Não há qualquer voz vinda de cima ou qualquer pendor que venha auxiliar-nos a estabelecer um alto e um baixo. Pelo que lembro, os únicos pronunciamentos humanos no filme são sempre reproduções mecânicas previamente gravadas, radiodifusões ou mensagens fonadas. A palavra escrita surgia apenas estampada como marca (HYUNDAI).
Esse “não lugar” no filme é a possibilidade de situar-se nessa posição onde podemos olhar para os dois lados ou para os diversos lados contando o filme não insinuar um binômio. Estamos certamente numa fronteira, um ponto de vista entre dois, mesmo sendo território local ou ambiente familiar. Essa oposição é provocada por montagem: trata-se de diversas posições (de câmera, obviamente) ligadas ou (re)unidas um pouco à revelia (como a bandeira no alto do prédio da cidade que faz sombra sobre o homem remando no mangue).
Também a essa precedência naif de “quem ainda não aprendeu a falar”, Brasil S.A. não opõe e nem é uma ode maravilhada ao barulho eufórico do bom funcionamento das máquinas. O som do filme é sempre de uma sinfonia desumana, a atroz ficção das máquinas, sempre prontas para amputar, sedutoras porém extremamente difíceis de causar qualquer identificação. Dois usufrutos: de um lado, ainda acanhado e um pouco canhestro, é preciso acoplar-se à máquina, pois se trata do surgimento de uma nova natureza, originada do fogo, e será necessário aprender a utilizá-la como armadura (hardware) ou apenas formar par, porque a questão seja apenas coreografia; do outro, mais desembaraçado, a plena realização do deslizar de superfícies umas sobre as outras, com as crianças sentadas a salvos nas cadeirinhas no banco de trás, desejo de mobilidade irrefreável alcançando novos patamares e servindo a contento, até que um buraco na estrada venha desalinhar todos os sonhos de retas. O Sol irá preencher o (novo?) centro da bandeira verde amarela e virá tostar, carbonizar, esturricar, ocupando o lugar da ideologia positivista de Ordem e Progresso. O Sol é apresentado no filme como um super-poder dotado de justiça própria, o astro maior de nosso sistema vem ocupar seu lugar de direito como ser orgânico que reina sobre a engenharia, destituindo as 27 estrelas dos estados e distrito e dissipando as fronteiras (as linhas imaginárias) entre eles, nessa nova pátria solar que o filme parece inaugurar.
Falta comentarmos sobre a grandiloquência épica, o futurismo e o construtivismo do filme. Montagem por atração, mas principalmente montagem por choque. Há limites claros na demarcação da empreita: vindos da China, aportamos em Brasil S.A. (o filme, mas também o espaço territorial do país cinematográfico LTDA. construído dentro do filme) acompanhando um carregamento de veículos tratores que substituirão os longos vínculos do trabalho humano no corte da cana – ainda, engenhos – a cana-de-açúcar agora é matéria-prima para locomotores, através da produção do etanol. Este seria o extremo oeste do filme. Os manguezais são a porta de acesso à leste e extensão natural em contato com esse universo canavieiro agreste. Os manguezais também são limítrofes (posto de passagem na fronteira) com a metrópole – a selva de concreto que avança voraz, movimento de aglutinação, mas também de deglutição, ensurdecedora e sem qualquer possibilidade de identificação em meio a tanto barulho. O elemento vivo nesse universo de concreto é o carro – o único movente em habitat natural - num mundo sem cromoterapia. O outro ponto cardeal desse país dos automóveis é a pérola negra, o petróleo. Há ainda sequências muito intensas, até mesmo atrevidas, por afundarmos nas nossas contradições; como exemplos, as cenas com atores negros passando pó de arroz no rosto e valsando um baile à Viena (porque qualquer restrição quanto uma perca da originalidade ou dos costumes tradicionais desperdiçaria as potencialidades e projeções do poder de poder passar pelo outro – um outro de classe, sexual, racial, religioso, cultural). Ou a parte musical no filme quando toca o hit The Sound of Silence durante um culto religioso (por que a questão que sempre retorna é: quem detém a Palavra? Quem pode/deve falar por Quem?).
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