[Dificuldade dos imigrantes muçulmanos na França é ilustrada num prato de cuscuz]
Um filme sobre o terceiro mundo que existe dentro do primeiro mundo e que jamais aparece nos cartões postais. Um filme sobre a cultura árabe lutando para sobreviver cultural e financeiramente nas periferias francesas. Um filme sobre uma família que une e se desune gradualmente, dividindo alegrias e tristezas numa mesa com cuscuz. Um filme sobre a mistura dos dialetos. Um filme sobre um barco velho e um sonho. Todos esses filmes estão dentro de O Segredo do Grão, terceiro longa do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche.
Aos céticos, pode soar como um drama familiar de perdas e danos. Aos otimistas e alheios, pode até ser uma comédia de costumes. A verdade é que o grande vencedor do prêmio Cesar em 2008 é uma obra minuciosa, de sensibilidade ímpar; tão singela, tão acolhedora, que seu gênero torna-se inclassificável, embora tenha uma pitada de neo-realismo nessa história. O filme possui ainda uma das performances mais marcantes que já vi no cinema: a da francesa Hafsia Herzi, vencedora no festival francês e no de Veneza. Sua interpretação assombra pela intensidade, franqueza e espontaneidade que irradiam da tela.
Embora seja um filme denso, O Segredo do Grão se sustenta num enredo simples. O cenário é a cidade de Sete, região portuária no sul da França. Lá vive o calejado Slimane Beiji. Após perder seu emprego nas docas do Mar Mediterrâneo, ele direciona seus esforços no projeto de um restaurante de cuscuz dentro de um barco velho. Primeiro porque precisa ajudar à família que passa por dificuldades financeiras. O peixe que leva regularmente a ex-mulher e aos filhos não é suficiente para aliviar as dificuldades de uma região que enfrenta a escassez e o desemprego. Segundo porque detesta a idéia de viver de favor no hotel de sua atual companheira. E terceiro porque o cuscuz marroquino da sua mulher é delicioso.
Auxiliado pela enteada Rym (Hafsia Herzi), ele parte em busca de financiamentos e da licença municipal. As dificuldades são enormes. Como o projeto é limitado no papel, a Prefeitura dá o aval para que o restaurante funcione por uma noite. Para que seja uma noite de gala, o patriarca investe o que tem e o que não tem e convoca toda a sua família para ajudar na inauguração. A partir daí, encontros, desencontros e lavagem de roupa suja se sucedem entre as duas famílias de Slimane. Uma confusão na hora de transportar o cuscuz para o barco atrasa os pedidos e coloca tudo a perder Só uma bela carta na manga poderá salvar a reputação do restaurante.
Essa cartada quem dá é o diretor. Independente da resolução ao suspense que se instaura logo na metade do filme, o que vale ressaltar dessa produção é a sua consistência. Priorizando a emoção, Kechiche passeia livremente com a câmera na busca pela identidade dos seus personagens. Como os diálogos possuem uma simplicidade casual que beira o improviso, -e conforme o modo como se filma, pode tornar o filme fastidioso- seu mote é registrar a linguagem corporal dos atores enquanto a conversa flui.
E aí a personagem de Hafsia dá seu show à parte. Todos os momentos em que a menina entra em cena, o filme se torna tão verossímil que parece que estamos assistindo a algo que acontece do outro lado da nossa janela. O ponto alto de sua atuação se dá numa cena onde ela blasfema a ex-mulher e os filhos biológicos de Slimane, na frente de um espelho. Não é genial, é mais que isso: é assustador!
Sei que não é lá muito ético dedurar o final do filme. Só vou adiantar o seguinte: ele é ambíguo. Solúvel e dissolúvel; feliz e infeliz, ao mesmo tempo. O sonho do restaurante sobre as águas, perseguido com fervor por Slimane e a família no filme talvez tenha o mesmo ímpeto que os imigrantes muçulmanos buscam para se auto-afirmarem na Europa. Sobreviver nas periferias do velho continente onde sobram apenas as migalhas não é um prato saboroso como o cuscuz marroquino, mas é o que resta aos que buscam um pouco de reconhecimento e dignidade. Lutar é o mais importante.
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