[O caos reina no novo filme de Lars von Trier]
Lars von Trier é como aquela criança teimosa que não ganhou doces por ter se comportado mal e quer chamar a atenção. Age por impulso. Com intransigência. E com coragem desmedida. O que pode ser bom ou ruim, dependendo da situação.
Na década de 90, a certa altura do filme Os Idiotas, o protagonista loirinho olha para seus amigos e grita: “Suruba!”. Começa então uma longa seqüência de sexo real entre os atores. Não me lembro muito do restante dos acontecimentos, mas confesso que na época não compreendi muito bem as simbologias que o diretor usou no seu filme-símbolo do manifesto Dogma 95 que ele ajudou a fundar ao lado de Thomas Vinterberg. Aliás, até hoje não entendo o que aquela putaria tem de diferente da putaria dos filmes da Hustler. Sou burro demais pra compreender certas coisas. Por isso, continuo achando Os Idiotas um exercício de pura pretensão. Ao contrário de Festa de Família, bela contribuição de Vinterberg em um dos melhores filmes daquela geração.
Mas Lars von Trier está longe de ser superficial. Filmes como Dançando no Escuro e Dogville são dois belos exemplos de que o cara tem lá suas epifanias. Depois de ter mandado umas bolas na trave nos últimos anos, o cineasta dinamarquês voltou a dar o ar da graça com Anticristo. Em seu novo filme, Trier não abre mão de suas ideias e tenta nos explicar, entre outras coisas, por que Nietzsche chorou.
[Deus está morto!]
Para um cara como Trier, que gostava de desprezar a técnica em detrimento das idéias, a abertura de Anticristo é um baita de um contrassenso. Com uma plasticidade mediúnica, o oscarizado diretor de fotografia Antony Dod Mantle (Quem Quer Ser um Milionário) faz do prólogo do filme um virtuoso espetáculo visual. Suas lentes em preto e branco registram com primor a cena de sexo explícito entre os protagonistas Charlotte Gainsbourg (21 Gramas) e Willem Dafoe (Platoon), intercalada com a morte acidental do filho do casal.
Na sequência, a história segue dividida pelos atos denominados Luto, Dor, Desespero, Os Três Mendigos, até o derradeiro epílogo. Todos os blocos do filme baseiam-se na luta do casal em conviver com a perda da criança. Sem se tratar pelos nomes, homem e mulher buscam refúgio numa cabana isolada. Numa tábua emoldurada nas proximidades da residência encontra-se a palavra Éden.
Confinados na própria dor, homem e mulher se curvam diante do luto. Ele, terapeuta, é mais forte, e tenta reconfortá-la. Ela, no princípio, se recusa, e depois aceita a ajuda do marido. Na tentativa de seguir adiante, surge nela divagações e sentimentos reprimidos, entre eles, a tese do feminicídio que ela estudava antes da tragédia.
Transformados pelo ambiente predatório da cabana, o casal torna-se vítima de delírios e incidentes conflitantes que pouco a pouco vão os deteriorando. O que há de se esperar quando se está no Éden? “O horror, o horror!”, diria o coronel Kurtz.
Resumo da obra: Anticristo -título da obra de Friedrich Nietzsche, um dos autores favoritos do dinamarquês- é um filme influenciado de corpo e alma nas temáticas e idéias prediletas do diretor. Lars von Trier, como de costume, preenche seu cinema com antagonismos: o bem e o mal, a vida e a morte, sonho e realidade. Esquerdista e ateu inveterado, o diretor não perde a chance de criar polêmica e defender suas convicções. O que não é de todo ruim.
O que não convence no seu cinema é a abordagem anacrônica de alguns assuntos. Questionar a existência de Deus, ora!, Bergman já fazia isso há 50 anos atrás. É como ouvir Legião Urbana ou qualquer outra banda com letras de protesto: não combina com os questionamentos da sociedade atual. É um lance tão cafona quanto usar suéter amarrado no pescoço. As pessoas não querem mais saber de assuntos intangíveis. Certas reflexões (infelizmente, talvez) devem se restringir às universidades e não às salas de cinema, pois já perderam o seu impacto. E a sequência onde aparece um close frontal nas genitálias pode até enrubescer alguns espectadores, mas o público em geral não se intimida mais com isso.
Agora, se por um lado Trier comete alguns pecadilhos (ok, isso era pra ser uma piada) por outro mostra uma competência inédita na condução do suspense, com passagens pra lá de climáticas. Anticristo não é seu melhor trabalho, mas tem impacto e imagens poderosas o suficiente pra ser um dos mais imperdíveis da temporada. Principalmente pela bela atuação de Charlotte Gainsbourg, não por acaso, laureada em Cannes.
http://blig.ig.com.br/planosequencia/
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário